Livro alentado do escritor Gonçalo Junior expõe a complexidade do temperamento do músico e compositor carioca. Capa da biografia 'Jacob do Bandolim – Um coração que chora' Divulgação Resenha de livro Título: Jacob do Bandolim – Um coração que chora Autor: Gonçalo Junior Edição: Noir Cotação: * * * * ♪ A leitura da biografia Jacob do Bandolim – Um coração que chora (2020) exige fôlego. São 672 páginas com letras pequenas e com narrativa detalhista que, por vezes, se alonga em excessivas contextualizações das vidas e obras de personagens que cruzaram os caminhos pessoais e profissionais de Jacob Pick Bittencourt (14 de fevereiro de 1918 – 13 de agosto de 1969). Contudo, a persistência na leitura do livro – posto nas lojas físicas e virtuais pela editora Noir a partir de 10 de dezembro – é recompensadora porque, das 672 páginas da biografia, salta toda a riqueza de uma das personalidades mais complexas da música brasileira. Um artista genial e genioso. Pela genialidade no toque do bandolim, instrumento elevado por Jacob ao mais alto patamar artístico por todo o intenso sentimento com que manuseava as cordas choronas, o músico foi amado e glorificado – mesmo sem nunca ter mostrado a agilidade técnica do contemporâneo Luperce Miranda (1904 – 1977), outro ás do bandolim. Ou precisamente por sempre ter posto a emoção à frente da técnica. Pelo temperamento irascível e pelo apego radical às tradições do choro, Jacob foi odiado e demonizado por ter atacado publicamente ícones da Bossa Nova e da Tropicália, além de músicos da mesma geração. O habitualmente zen Gilberto Gil, por exemplo, chegou a desferir comentários ferinos contra Jacob, motivados pela repulsa de Gil à recusa do bandolinista em aceitar o estado permanentemente mutante da música. Autor da biografia, o jornalista e escritor baiano Gonçalo Junior apresenta livro monumental, redigido e feito com o mesmo fôlego exigido do leitor. Residente em São Paulo (SP), o escritor vai além do trabalho pioneiro feito há cerca de 25 anos pela professora Ermelinda Paz, autora da primeira e até então única biografia do metódico bandolinista e compositor carioca, Jacob do Bandolim (1997). A bem fundamentada narrativa de Gonçalo foi construída com base em entrevistas com personagens relevantes na vida de Jacob (como o pesquisador musical Ricardo Cravo Albin e o compositor e produtor Hermínio Bello de Carvalho), audições de cerca de 400 horas de gravações raras (incluindo registros dos lendários saraus promovidos pelo artista na casa em que morou na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro) e pesquisa de cerca de sete mil documentos (com destaque para os então inéditos diários escritos por Jacob de 1934 a 1941, fontes indiscutíveis das idiossincrasias de Jacob). Cedido a Gonçalo Junior pelo Instituto Jacob do Bandolim, esse rico material contribuiu decisivamente para que o escritor perfilasse Jacob com precisão. Sem tomar partido do biografado, o autor enfatiza o valor perene da arte maior de Jacob do Bandolim, perpetuada em álbuns antológicos como Vibrações (1967) e o disco ao vivo decorrente da gravação de show que uniu em 1968 o músico à cantora e amiga Elizeth Cardoso (1920 – 1990), ao Zimbo Trio e ao conjunto Época de Ouro. Mas Gonçalo Junior jamais se esquiva de retratar Jacob com todos os sentimentos ruins, as rivalidades e as contradições do cidadão que ganhou a vida como escrivão criminal. O escritor sequer omite o rumor – aparentemente infundado, mas existente na época – de que Jacob teria feito da própria casa um local de tortura para ajudar a polícia a obter informações. Jacob do Bandolim tem vida e obra esmiuçadas em biografia de 672 páginas Reprodução / Facebook Instituto Jacob do Bandolim A postura independente e autônoma do biógrafo engrandece e legitima o livro, cuja narrativa é estruturada em ordem cronológica. No início dessa narrativa, o autor esmiúça a vida de Sarah Raquel Pick, mãe de Jacob. Judia de origem polonesa, Raquel atuou como prostituta e, depois, cafetina nos primeiros anos da vida do filho, marcados pelo bullying na infância vivida no mítico bairro carioca da Lapa. Mantida em segredo por Jacob, a profissão da mãe assombrou o artista ao longo da vida, também marcada pelos embates de Jacob com o próprio filho, Sérgio Bittencourt (1941 – 1979), compositor de Naquela mesa (1972), música em que Sérgio celebrou a memória do pai com quem viveu em turbulenta desarmonia. Gonçalo Junior consegue expor toda a complexidade humana de Jacob do Bandolim sem tirar o foco da arte do músico. O percurso profissional do artista é reconstituído de forma pormenorizada e, nesse sentido, o livro mostra como Jacob do Bandolim foi vital para a valorização e preservação do choro, inclusive por sempre ter se recusado a fazer as concessões aceitas pelo notório desafeto Waldir Azevedo (1923 – 1980), cavaquinhista que gravou discos de apelo mais popular, para manter o sucesso conquistado com a autoria de composições como o antológico choro Brasileirinho (1949) e o baião Delicado (1951). Enfim, a biografia Jacob do Bandolim – Um coração que chora presta valioso serviço à bibliografia musical brasileira ao perfilar gênio genioso movido pela paixão. Paixão pelo choro, pelos amigos fiéis (dos quais se afastava por meses se algum deles o contrariasse) e pela vida que, para ele, foi curta. Aos 51 anos, o coração purista de Jacob do Bandolim não suportou tanta emoção – e tantos males provocados pelo vício em cigarro – e parou de bater quando o artista sofreu o segundo infarto na porta da casa, para onde regressava após visita ao ídolo Pixinguinha (1897 – 1973). Compositor que legou obras-primas como Doce de coco (1951) e Noites cariocas (1957), standards de extensa obra autoral de valor atemporal, Jacob Pick Bittencourt tocava bandolim com o coração. Embora soe sentimental, a frase explica a emoção impressa na discografia desse artista perfeccionista que, mesmo tendo tido existência atormentada pelo próprios demônios, transcendeu a época em que viveu com o coração chorão na boca, nas mãos e na mente.