♪ MEMÓRIA – “Que mistério tem Clarice / Para guardar-se assim, tão firme, no coração?”, questionou Caetano Veloso através de versos do poeta e compositor José Carlos Capinan, letrista de Clarice, canção lançada pelo artista há 52 anos no álbum Caetano Veloso (1968). Enquanto o muito literário se faz a mesma pergunta nesta quinta-feira, 10 de dezembro de 2020, dia do centenário de nascimento de Clarice Lispector (1920 – 1977), a questão também ecoa entre os ouvintes de música brasileira. Escritora de origem russa, Clarice sempre teve textos absorvidos por cantores e compositores do Brasil ao longo dos anos. Intérprete de performance teatral, Maria Bethânia está habituada a recitar textos de Clarice em shows perpetuados em discos como Rosa dos ventos – O show encantado (1971) e Abraçar e agradecer (2015). Em 1984, a cantora chegou a encenar espetáculo, A hora da estrela, baseado na narrativa do romance homônimo – um dos livros mais populares da escritora desde que foi publicado em 1977 – com roteiro que incluía música então inédita de Caetano Veloso, O nome da cidade, composta para Bethânia com inspiração na personagem Macabéa, protagonista do livro. O mesmo livro A hora da estrela, aliás, gerou neste ano de 2020 um musical de teatro estrelado pela atriz e cantora Laila Garin com trilha sonora composta por Chico César (a temporada chegou a estrear em março, mas foi interrompida pela pandemia). Que mistério tem Clarice para permanecer assim, tão presente, no coração da música e dos músicos do Brasil? Difícil decifrar este mistério, pois a escrita de Clarice é densa e exige reflexão – o que já a torna instantaneamente contraindicada para servir de base para qualquer música que se pretenda tornar hit. Mas, talvez por isso mesmo, Clarice seja inesgotável fonte de sedução para artistas que buscam algo mais do que apelo pop. A cantora Leila Pinheiro, por exemplo, lançou em outubro álbum denso, Melhor que seja rara (2020), em que apresentou inédita composição autoral, Saudade, cuja melodia tinha sido criada em 2004 a partir de texto de Clarice. Anos antes de Leila, ninguém menos do que Cazuza (1958 – 1990) partiu de texto da escritora para escrever a letra de Que o Deus venha, parceria com Roberto Frejat lançada pelo grupo Barão Vermelho em álbum de 1986 e regravada quatro anos depois por Cássia Eller (1962 – 2001). Ava Rocha e Pedro Paulo Rocha também adaptaram Clarice ao compor Batendo no mundo, música lançada por Ava em álbum de 2011. E assim, ainda misteriosa e indecifrável, Clarice Lispector ressoa na música do Brasil.