A narrativa extrapola o antológico disco de 1976 e traça perfil biográfico-analítico do artista carioca de prováveis 81 anos. Capa do livro 'África Brasil – Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver' Érico Peretta Resenha de livro Título: África Brasil – Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver Autoria: Kamille Viola Edição: Edições Sesc (somente em e-book) Cotação: * * * * ♪ O recém-lançado livro sobre o 14º álbum de Jorge Ben Jor – África Brasil, disco digno de figurar em qualquer antologia fonográfica nacional – oferece mais do que promete. Caso se limitasse somente a dissecar a gravação do LP e a criação do repertório inteiramente autoral desse álbum de 1976 em que o artista carioca assume a eletricidade da guitarra, em processo iniciado em 1975 com a transição do músico do violão para o amplificado violão ovation, o livro África Brasil – Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver já teria dado contribuição relevante à bibliografia musical brasileira. Contudo, a jornalista carioca Kamille Viola – autora do terceiro título da Coleção Discos da Música Brasileira, organizada por Lauro Lisboa Garcia e lançada pelas Edições Sesc – vai além ao apresentar alentado perfil biográfico-analítico da trajetória de Jorge Lima de Menezes, do nascimento, supostamente em 1939, até a gravação do álbum que impulsiona a narrativa. Nesse perfil, Viola contribui para elucidar questões ainda nebulosas na biografia do arisco e enigmático cantor, compositor e músico carioca. O dado mais importante nesse trabalho de pesquisa é a descoberta da (provável) certidão de nascimento de Ben Jor. O artista sustenta há anos que nasceu em 22 de março de 1945. Contudo, baseados em informações do cantor no início da carreira, jornalistas e sites confiáveis sempre tenderam a informar que Ben Jor veio ao mundo em 1942. Kamille Viola surge no livro com a informação crível, pelo exame da certidão de nascimento, que a data provável do nascimento de Jorge Lima de Menezes é 22 de março de 1939 (a certeza é quebrada somente pela imprecisão do nome da mãe no documento). O artista teria feito, portanto, 81 anos em 2020. Embora importante, a questão da idade é menos relevante do que o voo musical de Ben Jor, captado em toda a amplitude pela autora. Kamille teve acesso a Ben Jor – que lhe concedeu entrevista sobre as origens e sobre a gênese do álbum África Brasil em maio deste ano de 2020 – e escreveu texto em que expressa a devoção ao som do artista, de notória personalidade forte. Em que pese a admiração, também notória, a autora jamais perde o foco jornalístico na narrativa escrita em tom objetivo como se estivesse redigindo reportagem em que mais pesa a informação precisa do que o estilo. Tanto que o livro deixa claro, nas entrelinhas e também fora delas, que a contribuição realmente histórica de Jorge Ben para a música brasileira acaba a rigor com a realização da obra-prima África Brasil. Nascido em Madureira, mas criado no Rio Comprido, Jorge tem ascendência etíope, mas herdou do pai estivador, Augusto, o gosto pela música. Também cantor e compositor, Augusto tocava pandeiro no bloco Cometas do Bispo, no qual Jorge debutou na música como tocador de surdo. Depois, o filho passou para o pandeiro e, indo do profano ao sacro, teve contato com a música cristã no seminário que frequentou como coroinha. Mas foi ao ganhar um violão da mãe, Silvia (ou Sebastiana, como consta na suposta certidão de Jorge) que o jovem começou a pavimentar o caminho que o faria alçar alto voo artístico, ainda que a primeira atuação profissional, em 1965, tenha sido como pandeirista acompanhante do Copa Trio em shows no Beco das Garrafas. Já começando a misturar as informações do rock, canto gregoriano e da música brasileira com a matriz africana, Jorge integrou a lendária turma da Tijuca – ao lado de Erasmo Carlos e de Tim Maia (1942 – 1998) – e, aos poucos, burilou no violão uma batida diferente que dividiria águas na música brasileira ao ser apresentada formalmente em 1963 no álbum apropriadamente intitulado Samba esquema novo. Jorge Ben Jor teria nascido em 1939, como sugere certidão de nascimento encontrada pela jornalista Kamille Viola Deju Matos / Divulgação A nova bossa negra de Jorge Ben ganhou o mundo (ao ser reprocessada em 1966 nos Estados Unidos pelo toque do pianista Sergio Mendes), influenciou os tropicalistas, marcou posição política contra o racismo – como Kamille Viola enfatizar ao historiar a importância de álbuns engajados como Negro é lindo (1971) e da construção de cancioneiro que exalta a mulher negra com amor, se desviando da mera objetificação sexual do corpo preto – e se tornando um dos artistas mais influentes do Brasil em todos os tempos. Destacado na parte final do livro, o depoimento do rapper Mano Brown à autora resulta esclarecedor para mostrar como Jorge Ben Jor fez a cabeça de nomes do ponto do hip hop brasileiro – e também do Manguebeat, como reforçam ícones do movimento em depoimentos à autora. A devoção decorre tanto da musicalidade singular da obra como da visão consciente do artista como homem que sempre manifestou orgulho de ser negro. Iniciada no mundo do disco em 1962, com a convocação de Jorge como crooner para a gravação das então inéditas músicas autorais Mas que nada e Por causa de você, menina para álbum do organista Zé Maria, Tudo azul, a trajetória do artista atinge o ponto culminante de 1969 a 1976. São desse período o álbum tropicalista Jorge Ben (1969) – disco que marcou a ressurreição do cantor nas paradas após período de pouca visibilidade – e A tábua de esmeraldas (1974), disco que sedimentou a paixão do artista pela alquimia, mote também do posterior Solta o pavão (1975). O álbum África Brasil chegou na sequência, em 1976, para encorpar o som de Jorge Ben em conexão que unia samba, funk, rock e soul a partir do elo africano, matriz dos sons dos terreiros entranhados na obra de Jorge. Kamille Viola se ocupa evidentemente do álbum África Brasil, mas, como dito, o que agrega valor ao livro são elucidações sobre o homem e a obra. A autora sentencia, por exemplo, que nunca houve uma musa chamada Tereza na vida de Jorge. A única musa é a paulistana Domingas Terezinha Inaimo de Menezes, que tem Tereza no nome, o que provocou a confusão alimentada por Jorge. Outra questão elucidada é o fato de a condensação das palavras da letra do samba País tropical (1969) – síntese que gerou até palavras como Patropi – ter sido fruto da mente criativa de Jorge Ben Jor, e não do cantor Wilson Simonal (1938 – 2000), intérprete mais famoso de País tropical e a quem normalmente é atribuída a invenção, alardeada pelo próprio Simonal. Ben Jor encurtou as palavras e Simonal – a quem Ben Jor permaneceu fiel quando o cantor caiu em desgraça – pôs o habitual champignon. Enfim, mesmo longe de ser a biografia completa e definitiva de Jorge Ben Jor que ainda precisa ser escrita, o livro África Brasil – Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver resulta importante por investigar a vida e o processo criativo do artista, mostrando toda a relevância musical e política de Jorge Lima de Menezes.