Ao G1, cantora também fala de preconceito: 'Racismo não está só ali quando alguém taca uma banana na tua cara, está ali quando a pessoa já olha para você e acha que você é cota'. Any Gabrielly Rolim Soares nasceu em Guarulhos (SP) em outubro de 2002. Aos 14 anos, viu um folhetinho na escola de dança que frequentava, em São Paulo, convocando brasileiras para "o novo grupo de Simon Fuller". O tal novo grupo era o Now United, como hoje se sabe. Any correu para dar um Google no nome do produtor inglês. Encontrou um currículo falando de Spice Girls, "American Idol" e Amy Winehouse. Em quase uma hora de entrevista por telefone ao G1, ela falou do grupo de pop global formado por 15 jovens de 15 países diferentes, entre 17 e 23 anos. Antes do grupo, hoje o mais ouvido pelo público infanto-juvenil brasileiro, ela fez musicais e dublou a Moana, no filme da Disney. Além de música e de carreira solo, ela também falou de racismo, da admiração por Beyoncé, da força do TikTok e da influência musical da família. Leia abaixo a entrevista com Any Gabrielly e ouça no podcast acima. Os 5 passinhos de Kyle Hanagami no Now United G1 – Li que você soube da vaga por meio de um folheto na sua escola de dança e que você cantou 'Valerie' no teste. Mas queria ouvir de você, detalhe por detalhe, como foi o processo, cada fase, para entrar no Now United… Any Gabrielly – Olha, realmente foi um processo bem longo, mas muito divertido, sabe? Eu estava em uma onda de estudar muito dança, tinha parado para focar nisso, porque era uma área que eu não estava tão desenvolvida assim. Veio essa audição na minha escola de dança, que foi onde eu achei esse folhetinho que você falou com a foto do Now United, falando que era do Simon Fuller. Eu vi que ele já tinha feito várias coisas incríveis. É óbvio que eu queria, né? Eu falei: "Nossa, é a minha oportunidade de fazer algo fora". G1 – Você deu um Google nele? Any Gabrielly – Sim, com certeza. Eu fui ver mais sobre o projeto, se tinha mais informações sobre. Fui ver quem estava no folheto, quem era Simon Fuller, a empresa dele. Eu dei uma olhadinha em tudo, né? Eu achei muito incrível, fui fazer o primeiro teste e cantei "Valerie" [música do The Zutons, famosa na voz de Amy Winehouse]. A produtora começou a chorar, mas viu que eu era muito nova ainda. O teste era para 16 e 17 anos. Eu tinha 13 para 14. Então, ela falou "eu não acredito, a gente achou, mas é muito nova". Eu sei que depois disso eu ainda fui para mais dois testes. Eu tive que cantar uma música, dançar uma coreografia e conversar bastante, foi tipo uma entrevista de emprego mesmo. "Por que você merece estar no grupo? O que te faz diferente das outras meninas no do Brasil? Qual seu sonho?", enfim. É tudo para explorar a sua personalidade. Depois disso, eu fui para Los Angeles e aí foi que o bicho pegou. Porque tinha muita gente do mundo inteiro. Muita gente talentosa, linda. Any Gabrielly com o Now United no clipe de 'Paraná' Divulgação G1 – Lá em Los Angeles só tinham alguns poucos selecionados ou ainda tinha mais gente, era uma fase de seleção mesmo? Any Gabrielly – Eram pessoas que foram selecionadas, mas não tinham passado ainda para o grupo. Era a fase final. Então, tinham vários pessoas de cada país. Da Alemanha, sei lá, tinha quatro pessoas da Alemanha. China: tinham três da China. Era meio que uma competição. Tinha mais uma menina do Brasil também, sabe? Era uma mini competição para ver quem que ia entrar no grupo. Eu me senti de verdade em um reality. G1 – No seu Instagram, tem uma foto de você bem pequena, com um vestido amarelo falando que você fez tipo um 'showzinho' para sua família. Você sempre tinha costume de fazer isso na infância? Você sempre queria dançar, cantar? Any Gabrielly – Isso era uma coisa que eu fazia muito entre família, porque eu sempre falo que minha família é muito, muito, muito musical. Meu vô toca violão, minha avó cantava na igreja, minha tia trabalha profissionalmente com isso, a minha outra tia fez circo e tudo, eu fiz com ela inclusive. Era coisa da família de se juntar e fazer um som, cantar todo muito junto, gravar vídeo, aprender a tocar instrumento, conversar sobre música, sabe? Então, eu sou bem eclética, sabe? Initial plugin text G1 – O que vocês ouviam em família? Quais artistas? Any Gabrielly – Minha tia trabalhava no mundo dos musicais e ela era muito fã de Sandy & Junior. Aí vinha meu vô, ele escutava ópera, "A rainha da noite". Ele escutava Gigliola Cinquetti, uma cantora italiana. Aí vinha a família da minha mãe e do meu pai, que escuta bastante samba. Tipo Cartola, Reinaldo, Beth Carvalho. E eu amava Beyoncé, Rihanna, isso era eu. Eu gostava muito do mundo pop, adorava performances… E aí quando a gente se juntava para escutar música, era uma salada a playlist. Uma hora tinha MPB, outra hora tinha um sambão, a outra hora tinha uma ópera, era bem misturado. G1 – Como você lida com a questão de que isso que você está vivendo é uma 'diversão', mas também é um trabalho? Sinto um pouco isso no jornalismo cultural também… Any Gabrielly – Isso na verdade é em toda profissão, né? Porque todos nós temos dias ruins, todos nós temos dias maravilhosos. Tem altos e baixos, só que ninguém merece pagar pelo nosso mau humor, entendeu? Ninguém tem nada a ver com isso. É mais uma questão de ética do trabalho. Chegar no trabalho e estar disposto para fazer aquilo. É óbvio que a gente não tem que ficar: "ah, o mundo são fadas e arco-íris e tudo mais". [risos] A diferença disso na vida do artista é porque nós trabalhamos com a vida pública. Às vezes, falam coisas que não são verdade, querem saber mais da sua vida do que você mesmo. Isso que é frustrante na vida pública. Por isso que às vezes a gente acaba tendo que dar aquele sorrisinho a mais, aquela fingida básica. Mas eu gosto de demonstrar vulnerabilidade pros meus fãs. G1 – Como a dublagem de Moana deu uma mudada na sua carreira? Trailer de 'Moana – Um mar de aventuras' Any Gabrielly – Mudou muito. Eu já tinha trabalhado bastante antes, mas eu não estava ainda reconhecida na indústria. Nunca tinham me falado "nossa, a Any Gabrielly realmente é muito talentosa, eu respeito ela". Dar voz para uma princesa da Disney é uma coisa eterna, pra sempre que eu vou ser a voz da Moana no Brasil. Meus filhos, meus netos, meus tataranetos, meus tatataranetos, tatatatataranetos [risos] vão assistir Moana e vão escutar a minha voz, sabe? Também entendi o quanto a representatividade é importante. Porque a Moana traz muito o que faltava nesse universo das princesas. Às vezes, é tudo muito perfeitinho. Hoje, a gente está trazendo essa questão das princesas empoderadas e a Moana é uma delas. G1 – Sabendo da influência nas crianças e da possibilidade de falar de empoderamento, de diversidade… Como lidar com essa importância na vida de alguém? Any Gabrielly – Antes, eu levava tudo muito mais naturalmente. A partir do momento que entendi a responsabilidade que ser uma artista traz, isso te põe em uma posição em que você tem uma voz que as pessoas escutam. Você tem que aproveitar isso para mudar o mundo. "Do mesmo jeito que a gente consegue divulgar produtos e falar para que as pessoas assistirem a uma série, a gente também consegue propagar informação, propagar coisas positivas. " Eu não me coloco num pedestal, porque eu erro pra caramba. Eu tenho um medinho de causar um impacto negativo na vida das pessoas. Eu tenho medo de falar algo que não vai ser legal. Tem uma responsabilidade de eu ainda não saber tudo da vida. Eu não tenho todas as minhas opiniões e ideias formadas. Eu ainda não sei quem eu sou 100%. Any Gabrielly Divulgação G1 – Vocês têm um grupo de WhatsApp do Now United? Do que falam lá? Tem muita figurinha, falam de esporte, de séries, de besteira, como todo grupo de zap? Any Gabrielly – [Risos] Os gringos, na verdade vou entregar aqui, eles nem sabem usar muito figurinha… Para ser honesta, temos um grupo de WhatsApp, só que nele só tem trabalho. Quando a gente precisa falar alguma coisa, quando tem saudade, fazemos ligações em vídeo. Tem também reuniões semanais, em que a gente acaba comentando coisas da vida. É uma coisa mais orgânica, mas o grupo de WhatsApp é muito sem graça. Só tem alguém cobrando alguma coisa, ou alguém com alguma dúvida. Não tem nada de interessante lá. G1 – Vi sua mãe contando sobre a correria que ela passou para que você estudasse em uma escola particular. Como você era na escola e como é essa relação com sua mãe? Any Gabrielly – Eu sou muito grata à minha mãe. Se não fosse minha mãe eu não teria chegado onde eu estou. Tenho certeza, porque ela batalhou demais para me dar essa educação. Todos os cursos que eu fiz, eu não teria conseguido fazer se não fosse ela. Mas ela trabalhava em sete lugares ao mesmo tempo para que eu conseguisse fazer um curso. Nós trabalhamos juntas e essa relação foi sempre de gratidão mútua. Do mesmo jeito que eu ajudo minha família hoje em dia, minha mãe me ajudou. A gente sabe o tanto que a gente é importante na vida da outra. A melhor coisa também é nunca misturar "church and state". Como se fala em português? Tem um ditado para isso. Enfim, a gente separa o trabalho da relação pessoal. G1 – O antirracismo entrou ainda mais na pauta, primeiro nos Estados Unidos com a morte do George Floyd, depois no Brasil. Como você vê o racismo no Brasil? Any Gabrielly – O racismo no Brasil é muito mascarado. Também tem a questão do racismo estrutural. São coisas que eu vivo diariamente, porque é assim que a sociedade ainda funciona, sabe? Aos poucos, eu vou tentando apontar situações que acontecem para as pessoas irem desconstruindo isso, para irem percebendo como o racismo ainda é muito real. Eu acho incrível que quando a gente começa a discutir vem o povo falar que "é mimimi, ah mas tem tal lei para negro e negro tem cota, negro tem isso, negro está na vantagem, só fica chorando". "Se eu pegasse um estranho que nunca ouviu falar do grupo e eu mostrasse uma foto do grupo inteiro, eu sei que as pessoas não olhariam pra mim. Não falariam 'Nossa, ela é minha favorita'. Eu fui percebendo aos poucos, olhando as pequenas coisas, como os fãs reagiam. É assim que a gente vai desconstruindo o racismo que existe." Essas situações pesam muito para mim. Eu acho que as pessoas deveriam parar quando elas estão em algum restaurante mais bacana e olhar quantas pessoas negras estão lá. Assistir a um filme e pensar duas vezes quantas pessoas negras estão nesse elenco aí. Any Gabrielly Divulgação G1 – Quais situações de racismo você já passou, como elas te afetaram? E você sentiu alguma mudança depois que você passou a ser a voz de Moana, a mina do Now United? Mudou alguma coisa? Any Gabrielly – Os ataques de racismo eram muito diferentes, sim. Quando eu era criança, estava no colégio onde era predominantemente gente branca e um garoto sempre me chamava de macaca, sempre fez vários comentários horríveis sobre mim. Um dia, ele tacou bananas em mim. Todo mundo se juntou a ele, fazendo barulho de macaco, sabe? E aí eu me mantive forte, mas teve um dia que eu cheguei chorando para minha mãe falando que foi horrível. Aconteceu uma reunião de pais para discutir o que aconteceu e o garoto não foi punido. Outra também que foi bem forte. Eu estava com minha família, tinha acabado de voltar de um teatro e tinha acabado de me apresentar. A gente tinha ido comemorar nessa padaria bem famosa aqui de São Paulo, que tem pratos incríveis, enfim. Foi bem na época das eleições, então estava bem forte aquela coisa de PT e Bolsonaro. Esse moço levanta e começa a berrar com a gente falando que não era o nosso lugar lá, chamando a gente de preto e macaco, que a gente tinha que sair de lá. E aí batendo no peito gritando "Aqui é Bolsonaro", enfim. O povo da padaria ao invés de tirar essa pessoa do estabelecimento, ainda olhou pra gente como se a gente tivesse que sair, sabe? No fim, não tiraram essa pessoa, só colocaram a gente numa mesa distante. Essas duas situações são coisas que me marcaram muito, muito, muito. Minha mãe tem uma lista de outras coisas quando achavam que eu era adotada, porque minha mãe é branca. "O que mudou é que as pessoas não têm mais coragem de chegar apontando o dedo na minha cara falando que eu sou preta, eu sou macaca e não sei o quê. Mas a forma de tratamento e pré-julgamento ainda existe. Racismo não está só ali quando alguém taca uma banana na tua cara, está ali quando a pessoa já olha para você e acha que você é cota." Ou olha pra você e acha que você só está ali porque, não sei, você casou com alguém rico. Nunca vai ser um mérito seu de estar ali. As pessoas nunca vão ter você como favorita. Tem certos estereótipos também que vêm com a mulher negra. A questão de sexualizarem muito a mulher negra acontece muito, especialmente quando eu estou fora do Brasil. Tantos comentários que eu já tive que ouvir sobre isso… Essas coisas são enraizadas, entendeu? Now United Divulgação G1 – Falando em exemplo, eu sei que você é muito fã da Beyoncé. Por que você é tão fã dela? Any Gabrielly – É aquela coisa que todo mundo fala: representatividade importa, né? Desde muito pequena, eu olhava para Beyoncé e ela era uma pessoa que eu me identificava de verdade. Nunca vou desmerecer as outras, tinha Katy Perry, Britney Spears. Mas não eram pessoas que eu conseguia me enxergar nelas. Mas eu conseguia me ver na Beyoncé. Além de ser extremamente talentosa, a minha admiração por ela só cresce a cada projeto que ela lança. Cada vez que ela abre a boca para falar sobre alguma causa importante, ela tem um poder de representatividade, um poder de espalhar conhecimento para as pessoas. E um poder também de entreter. Eu fui num show dela e morri de chorar, esqueci de todos os problemas na vida. É uma coisa que eu levo muito como inspiração para mim. G1 – Queria que você falasse da relação entre o Now United e o TikTok. E por que você acha que o TikTok pegou tanto com quem é mais novo? Any Gabrielly – O TikTok estourou em um momento muito certo, que foi a quarentena. Estava todo mundo em casa, sem ter o que fazer. E aí do nada surge uma rede social que conecta todo mundo, todo mundo fazendo as mesmas dancinhas. As músicas do Now United têm essa mensagem positiva sempre. As dancinhas são uma forma de deixar a música mais interativa, mais palpável para o fã. Eles criam uma conexão real com a música. Não é só uma coisa de "ah, vou lá dar um stream, escutar". Se você for uma festa você vai escutar aquela música e todo mundo vai saber a dancinha. G1 – Pra fechar, falando de música, com todo esse background que você tem, tão eclético, e com o Now United mais voltado para o pop… Como você vê a sua carreira como cantora? Você acha que tem chance de ir por outros caminhos? É uma pergunta complexa: como você vê o seu futuro musical? Any Gabrielly – É uma pergunta complexa mesmo. Eu tenho uma conexão muito grande com o pop e R&B. É uma coisa que me enche meus olhos. Mas eu gosto de tudo da mistura desses dois. Geralmente, quando alguém consegue achar o equilíbrio entre o indie, o R&B e o pop numa música só, eu falo "nossa essa música estourou". Então, eu acho que se eu for seguir nessa linha de "ah, vou criar vou fazer o meu próprio negócio", provavelmente vai ser uma mistura assim. Eu acho que nem vai se encaixar em uma gavetinha só. Eu acho que vai ser uma coisa meio mesclada. [risos] Justamente porque eu tenho tantas referências de tantos lugares e eu gosto de vários vários aspectos de cada uma. Aí eu acho que vou misturar tudo. Vai ser um negócio meu. O Top 10 do Now United