A abordagem do samba 'Na Baixa do Sapateiro' é o ponto mais alto do disco lançado pela cantora com os violonistas André Pinto Siqueira e Maurício Massunaga. Capa do álbum 'Ary', de Alice Passos com André Pinto Siqueira e Maurício Massunaga Helena Cooper Resenha de álbum Título: Ary Artistas: Alice Passos, André Pinto Siqueira e Maurício Massunaga Gravadora: Fina Flor Cotação: * * * * ♪ Para qualquer cantora do Brasil, pode ser arriscado abrir álbum dedicado à obra do compositor mineiro Ary Barroso (7 de novembro de 1903 – 9 de fevereiro de 1964) com o samba-canção Na batucada da vida (1945). O risco se deve ao fato de essa parceria de Ary com o letrista fluminense Luiz Peixoto (1889 – 1973) ter atingido tamanho grau de interiorização e grandeza na voz de Elis Regina (1945 – 1982) que essa referência máxima – para quem a tem, evidentemente – torna injusta e cruel qualquer inevitável comparação da gravação de Elis com o registro de outra cantora. Pois a carioca Alice Passos corre esse risco com o álbum Ary, lançado neste mês de agosto de 2020 pela gravadora Fina Flor. O samba-canção Na batucada da vida está lá, sem arranhões, em abordagem que já sinaliza o acerto do disco gravado e assinado pela cantora com os violonistas André Pinto Siqueira e Maurício Massunaga. Pelo formato, o disco Ary dialoga diretamente com o primeiro álbum de Alice Passos, Voz e violões (2017). Neste disco de estreia, lançado há três anos, a cantora deu voz a músicas de 13 violonistas compositores, acompanhada pelos respectivos autores em cada uma das 13 faixas. Em Ary, os violonistas são “somente” dois e o compositor é “apenas” um, o multimídia Ary Barroso, dono de obra de dimensão superlativa na história da música do Brasil. E o fato é que o trio virtuoso faz jus ao compositor em Ary, disco que apresenta o registro, feito no estúdio carioca Boca do Mato, de dez músicas do roteiro do show também intitulado Ary e idealizado em 2017 a partir de papo da cantora com os violonistas no bar carioca Bip-Bip. Apresentado pelo circuito do Rio de Janeiro desde 2018, o show Ary chega ao disco sem aparentes pretensões de “reler” ou “atualizar” o cancioneiro do compositor. Ary é o álbum de uma cantora que canta bem com dois violonistas que tocam bem. Quem ouvir Ary com atenção, contudo, talvez perceba no toque dos violões em Faixa de cetim (1942), por exemplo, o dengo que abrilhanta esse samba que exalta a Bahia com as cores vivas da aquarela do compositor. E por falar em cor, o samba Camisa amarela (1939) cai bem no tom buliçoso do canto de Alice em arranjo que evidencia os sons percussivos inseridos em algumas faixas, diluindo a linearidade recorrente em (alguns) álbuns de formato voz & violão. O samba Morena boca de ouro (1941) também cai nesse terreno sestroso. Já o registro do samba-canção Inquietação (1935) indica que, à técnica apurada do canto, Alice Passos precisa por vezes atentar mais para o sentido dos versos a que dá voz – como faz, por exemplo, ao interpretar Por causa desta cabocla (Ary Barroso e Luiz Peixoto, 1935) no tom lírico-seresteiro do arranjo. Choro-canção lançado em disco em 1951, em gravação do próprio Ary Barroso, Chorando é tema instrumental que dá o devido protagonismo a André Pinto Siqueira e Maurício Massunaga no roteiro do disco originado do show, confirmando a excelência dos toques do violonistas. Com arranjo de Siqueira, Chorando é a boa surpresa do repertório de Ary ao lado da Canção em tom maior (1960), revivida pelo trio em clima de seresta de câmara. É nesse clima que também foi ambientado o samba-canção Pra machucar meu coração (Ary Barroso, 1943), instante de beleza, resultante tanto do canto virtuoso (mas sem timbre diferenciado) de Alice Passos quanto dos bordados dos violonistas. No arremate do disco, os músicos se elevam (ainda mais) na trama de violões que sustenta nas alturas, durante seis minutos e meio, o samba Na Baixa do Sapateiro (1938), pico de sedução deste virtuoso e honroso Ary.