Cantora baiana aborda músicas dos repertórios de Baden Powell, Clara Nunes, Dorival Caymmi e Tincoãs em caloroso disco gravado com o piano de Yacoce Simões e a percussão de Citnes Dias. Capa do álbum 'Saudação', de Ana Mametto Flora Negri Resenha de álbum Título: Saudação Artista: Ana Mametto Gravadora: Edição independente da artista Cotação: * * * * ♪ “Labareda te encostou / Lá vai, lá vai labareda”, aponta a voz ardente de Ana Mametto no canto de versos do samba Labareda (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1963). Com manemolência, a cantora e atriz baiana eleva a chama desse afro-samba e se eleva ela própria, como intérprete, na sedução do álbum Saudação. Gravado com produção musical e arranjos do pianista Yacoce Simões, o disco Saudação está sendo lançado neste mês de agosto de 2020 com repertório formado por 12 músicas do cancioneiro afro-brasileiro. São músicas de compositores como Baden Powell (1937 – 2000), Dorival Caymmi (1914 – 2008), João Nogueira (1941 – 2000), Mateus Aleluia, Paulo César Pinheiro e Vinicius de Moraes (1913 – 1980), entre outros nomes identificados com a cultura afro-brasileira. Idealizado e formatado no Taba10 Studio em Salvador (BA), durante o período de isolamento social, o álbum Saudação se alinha com o universo musical do anterior EP da artista, Mametto (2017), lançado há três anos. Mametto, a propósito, é o nome do grupo liderado por Ana há cerca de dez anos para investir nesse infinito cosmo de matriz africana. Contudo, Saudação acaba soando como disco solo da cantora, ainda que o piano de Yacoce Simões e a percussão de Citnes Dias sejam elementos fundamentais para fazer Ana Mametto atiçar o fogo sagrado desse repertório afro-brasileiro. Basta ouvir a abordagem de Canoeiro (1944) – a música de Caymmi também conhecida como Pescaria – para perceber a profundidade e a sincronia do mergulho dado pela cantora com os dois músicos neste mar de referências afro-brasileiras. Em Canoeiro, a fricção da percussão de Citnes Dias evoca o movimento da rede lançada pelo pescador nas águas para enlaçar o peixe simbolizado, no arranjo, pelo fraseado livre do piano de Yacoce Simões. O baticum de Citnes Dias também cozinha em fogo alto o Canto de Xangô (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1966) – tema que funciona como espécie de cartão-de-visitas alocado na abertura do disco – em diálogo com o toque também incandescente e por vezes percussivo do piano de Yacoce Simões. Ana Mametto dá voz ardente a músicas como 'Canto de Xangô' e 'Atabaque chora' Flora Negri / Divulgação Em Canto pra Iemanjá (Mateus Aleluia e Dadinho, 1973), música do repertório do grupo Os Tincoãs, o piano é tocado com a limpidez camerística das salas de concerto sem tirar do horizonte africano a saudação à rainha das águas – orixá também louvado na solenidade do Canto de Iemanjá (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1966) e na efervescência rítmica de Atabaque chora (Mateus Aleluia e Dadinho, 1973), outra música do repertório do grupo Os Tincoãs. Mametto também faz resplandecer o samba As forças da natureza (João Nogueira e Paulo César Pinheiro, 1977), mesmo sem reviver a luminosidade do registro de Clara Nunes (1942 – 1983), de cujo repertório Ana também toma Banho de manjericão (João Nogueira e Paulo César Pinheiro, 1979) e Nação (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, 1982). Ao cantar Nação, Ana Mametto mapeia, dentro das próprias fronteiras, os signos e símbolos afro-brasileiros deste samba que batizou o último álbum da cantora. Com vivacidade na voz encorpada, Ana Mametto também chama O vento (Dorival Caymmi, 1949) e mostra A força da Jurema (Mateus Aleluia, Dadinho e Heraldo Bozas, 1973) e o som dos tambores do Candomblé ao reviver esse tema do recorrente grupo Os Tincoãs. No arremate do álbum Saudação, Ana Mametto dá voz branda à canção praieira O bem do mar (1954) – uma das dezenas de obras-primas do cancioneiro matricial de Dorival Caymmi – como se estivesse em recital de câmara feito com o piano de Yacoce Simões. A temperatura amena de O bem do mar contrasta com a elevação do fogo sagrado atiçado por Ana Mametto neste disco repleto de labaredas com a chama eternamente alta do cancioneiro afro-brasileiro. Álbum que faz com que a própria Ana Mametto mereça saudação pela força e beleza do canto ardente. “…Lá vai, lá vai labareda”…