Capa do álbum 'Entre e ouça', de Ed Motta Arte de Edna Lopes ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Entre e ouça, Ed Motta, 1992 ♪ Manuel foi definitivamente para o céu quando Ed Motta apresentou Entre e ouça, terceiro álbum de carreira iniciada profissionalmente em 1988, aos 17 anos. Lançado em agosto de 1992 pela gravadora Warner Music, o disco Entre e ouça quebrou a sequência de sucesso obtido pelo artista com os dois primeiros álbuns desse cantor, compositor, multi-instrumentista, arranjador e produtor musical carioca nascido em 17 de agosto de 1971. Sobrinho de Tim Maia (1942 – 1998), pioneiro tradutor do soul e do funk para o idioma musical brasileiro, Eduardo Motta tinha sido vocalista de banda de rock pesado Kabbalah na adolescência, fase em que se apaixonou pela música negra norte-americana, em especial pelo funk e pelo soul, ritmos que coincidentemente haviam norteado a primeira fase da discografia do tio. Essa paixão pautou o primeiro álbum do artista, gravado com a Conexão Japeri – banda evocativa da sonoridade black Rio que desde os anos 1970 dominava os bailes da pesada no subúrbio carioca – e lançado em 1988 com dois sucessos radiofônicos, Manuel (Fábio Fonseca e Márcia Serejo), hit do verso-refrão “Manuel foi pro céu”, e Vamos dançar (Ed Motta e Rafael Cardoso). Mais do que sucessos, o disco com a Conexão Japeri fez de Ed Motta a sensação da música brasileira em 1988, a ponto de a antenada (e então também emergente) Marisa Monte ter convidado o cantor naquele ano para duetos no show que gerou o primeiro registro audiovisual da cantora. A formação da Conexão Japeri – banda inicialmente batizada de Expresso Realengo – já incluía Marco Antonio Elias, o compositor e excepcional baixista carioca conhecido artisticamente como Bombom, músico com total domínio da linguagem da soul music. Tanto que, ao se desvincular da Conexão Japeri para pavimentar carreira solo com o álbum Um contrato com Deus (1990), Ed levou Bombom com ele para produzir e tocar baixo (e outros instrumentos) neste disco que descolou o cantor do som do subúrbio carioca e o distanciou da obra do tio Tim Maia ao mesmo tempo em apontou caminhos sofisticados que seriam trilhados pelo artista ao longo da trajetória fonográfica. Parceiro de Ed na composição do repertório de Um contrato com Deus, álbum que destacou a classuda balada Do you have other love? e o funk Solução (música que se tornou o hit do disco, garantindo o sucesso comercial do LP), Bombom teve participação igualmente fundamental na criação do álbum Entre e ouça. Neste disco em que Ed Motta mostrou determinação para fugir da fórmula do sucesso radiofônico para poder exercitar e experimentar a rica musicalidade sem amarras estéticas, Bombom assinou a produção e os arranjos de base com o artista. Oito das dez músicas trouxeram as assinaturas de Ed e Bombom, corroborando a importância do compositor e baixista no processo de criação do álbum Entre e ouça. As exceções foram Agora que o dia acabou (tema somente de Ed) e Lulu prelude, faixa solo do pianista Lulu Martin, músico integrante da banda arregimentada para o disco. Idealizador da capa que expôs arte de Edna Lopes, com quem o cantor havia se casado em 1990, Ed Motta mostrou no álbum Entre e ouça a intenção de fazer música como arte, e não como produto comercial – objetivo desenvolvido em discos posteriores como Dwitza (2002), Aystelum (2005), Chapter 9 (2008) e AOR (2013). Por contingências mercadológicas, o cantor voltaria ao pop com Manuel prático para festas, bailes e afins vol. 1 (1997), álbum primoroso que teve desdobramento após três anos com a edição do disco As segundas intenções do manual prático (2000). Disco de difícil absorção pela intrincada costura de referências musicais, Entre e ouça ficou na discografia de Ed Motta como espécie de bisavô de álbuns maturados como Perpetual gateways (2016) – disco majestoso em que o artista cruzou a ponte que liga o jazz ao soul com ecos de som da banda Steely Dan – e o recente Criterion of the senses (2018). O jazz, por exemplo, já apareceu entranhado em Entre e ouça no arranjo em clima de jam da música À vontade, cantada na língua particular do cantor, o edmottês, também idioma da faixa Noir em tons pastéis. Gravado por Ed e Bombom de dezembro de 1991 a fevereiro de 1992 no estúdio carioca Nas Nuvens, com as adesões de músicos como Jorginho Gomes (na bateria) e Jota Moraes (no vibrafone), o álbum Entre e ouça jamais renegou o soul e funk. A levada da música negra norte-americana já se insinuou na entrada de O nu que vale. Só que a vibe já era outra. Ao longo de dez faixas que totalizaram 42 minutos, Ed Motta apresentou azeitada mistura de funk, soul, rhythm and blues e jazz sem qualquer concessão ao pop. Para viabilizar esse mix vintage urdido com harmonias requintadas, o artista recorreu a equipamentos analógicos de gravação e a instrumentos da década de 1970 como clavinete e sintetizador Moog. Relançado em 2003 em CD, com faixas-bônus como a demo da faixa Que tal Londres? e registros ao vivo de músicas como Leve-me ao sonho e a composição-título Entre e ouça (captadas em show feito pelo cantor em maio de 1993 em teatro de Paris), o álbum Entre e ouça também foi editado em LP em 2014 dentro da série Clássicos em vinil, da Polysom, já com status de cult – o que reverteu a sensação de fracasso do disco na época do lançamento em 1992. Em qualquer tempo ou formato, o álbum Entre e ouça mostrou Ed Motta radicalmente à vontade em universo particular, como se tivesse rearrumado os móveis da própria casa ao bel prazer e restasse às visitas entrar e se acomodar (ou não) no reduto íntimo do artista.