Morte do artista, ícone da bossa nova, joga luz sobre obra engajada que inclui composições expressivas como 'Zelão', 'Folha de papel' e 'Esse mundo é meu'. ♪ OBITUÁRIO – Quando Maria Bethânia estreou o show Claros breus na casa carioca Manouche, em julho de 2019, uma das músicas que mais chamou a atenção no roteiro foi Pernas, samba de 1960, ambientado em clima de bossa nova e então inédito na voz da cantora. Seguidores de Bethânia logo descobriram que o autor do samba era Sérgio Ricardo (18 de junho de 1932 – 23 de julho de 2020), compositor, cantor, cineasta, pianista (de formação clássica) e pintor paulista associado tanto à bossa nova quanto à música feita para cinema, sobretudo para filmes do movimento intitulado Cinema novo. Pernas era o samba que abriu o LP A bossa romântica de Sérgio Ricardo (1980), segundo dos 17 álbuns de discografia encerrada pelo artista no ano passado com o DVD e CD Cinema na música de Sérgio Ricardo (2019). Ícone da bossa nova e do Cinema novo, Sérgio Ricardo – artista que saiu de cena aos 88 anos, na manhã desta quinta-feira, 23 de julho, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), vítima de insuficiência cardíaca – era o nome artístico de João Lutfi. Ao longo de 70 anos de trajetória profissional iniciada em 1949 e finalizada em 2019 com a edição do CD e DVD com temas feitos para trilhas sonoras de filmes, Sérgio Ricardo se provou tão bom de música quanto de cinema. Foi Um sr. talento, como ficou explicitado no título do sexto álbum do artista, LP lançado em 1964 pela gravadora Elenco com músicas como Barravento e Folha de papel. Pela dimensão desse talento musical, hábil na conciliação da modernidade da bossa nova com a poética social de músicas calcadas na realidade do povo do Brasil, Sérgio Ricardo jamais mereceu o estigma de ser quase sempre lembrado como o cantor intempestivo que, em 1967, quebrou o próprio violão no palco do III Festival de Música Popular Brasileira e arremessou o instrumento na plateia que o vaiava e o impedia de cantar o samba autoral Beto bom de bola. Sérgio Ricardo deixa obra engajada em álbuns obscuros como 'Arrebentação' (1971) e 'Do lago à cachoeira' (1979) Reprodução / Facebook Sérgio Ricardo Com discografia repleta de álbuns obscuros como Arrebentação (1971), Sérgio Ricardo (1975) e Do lago à cachoeira (1979), ainda que alguns títulos tenham sido reeditados em CD, Sérgio Ricardo aliou muitas vezes o dom da música à arte de fazer cinema com engajamento. Diretor de quatro longas-metragens – Esse mundo é meu (1964), Juliana do amor perdido (1970), A noite do espantalho (1974) e Bandeira de retalhos (2018) – e de vários curtas, o compositor fez músicas para filmes próprios e alheios, com direito à parceria com o cineasta Glauber Rocha (1939 – 1981) nas criações de Antônio das Mortes (1964), Corisco (1964), Lampião (1964) e Perseguição (1964), temas da trilha sonora do antológico filme Deus e o diabo na terra do sol (1964). Como compositor, Sérgio Ricardo deixou músicas expressivas como Buquê de Isabel (1958), Poema azul (1959), O nosso olhar (1960), Zelão (1960) – samba politizado em que o autor versou sobre a chuva que alagou o morro, destruindo o barraco e a vida da personagem-título – e Esse mundo é meu (1964). Senhor talento multimídia, pois nos últimos anos também se destacou como artista plástico, Sérgio Ricardo quebrou não somente o violão, mas a descrença de que um artista podia ser tão bom de música quanto de cinema, sem que a habilidade em uma arte empanasse o dom da outra. E, no caso desse compositor e cineasta, ambas as formas de arte foram exercidas com aguçada consciência social para propagar a ideologia de artista que tomou partido dos fracos e oprimidos na luta cotidiana pela sobrevivência. Dono de obra engajada, Sérgio Ricardo deixa forte marca ideológica na música e no cinema do Brasil.