Capa do álbum 'Marcelo D2 canta Bezerra da Silva', de Marcelo D2 César Martín Tovar ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Marcelo D2 canta Bezerra da Silva, Marcelo D2, 2010 ♪ Partideiro que soava indigesto para ouvidos urbanos habituados a ignorar a vida e os códigos dos morros, José Bezerra da Silva (23 de fevereiro de 1927 – 17 de janeiro de 2005) sempre fez a cabeça de Marcelo Maldonado Gomes Peixoto. Rapper convertido em sambista na eterna busca da batida perfeita, Marcelo D2 – nome artístico desse artista carioca nascido em 1967 e projetado nacionalmente a partir de 1995 com voz do grupo Planet Hemp – tirou onda dessa afinidade e celebrou a devoção ao cantor pernambucano no quinto álbum de estúdio da carreira solo, Marcelo D2 canta Bezerra da Silva, disco de título autoexplicativo produzido por Leandro Sapucahy. Idealizado em 2005, no calor da emoção pela morte de Bezerra aos 77 anos, o álbum somente ganhou forma cinco anos depois e foi lançado em outubro de 2010, pela gravadora EMI, com capa em que D2 refez, em foto de César Martín Tovar, a pose antológica de Bezerra na capa do álbum Eu não sou santo (1992). A diferença é que, nas mãos, o D2 crucificado à frente de uma favela portava microfones e não as armas da imagem original do disco de Bezerra. Sexto álbum solo do rapper, se postos na conta o CD e DVD editados pelo artista em 2004 na série Acústico MTV, o CD Marcelo D2 canta Bezerra da Silva soou inusitado na discografia do rapper por perseguir a sonoridade tradicional do samba nos arranjos do pianista Jota Moraes, orquestrados com percussões, violões, cavacos e sopros. Por outro lado, o álbum soou natural sob a ótica de quem sabia que D2 participara de disco revisionista de Bezerra, Meu bom juiz (2003), se juntando ao partideiro na regravação de Garrafada do norte (Édson Show, Wilsinho Saravá e Roxinho, 1992) no mesmo ano de 2003 em que convidou Bezerra para participar do clipe de Qual é? (Marcelo D2 e David Corcos, 2003), um dos maiores sucessos da discografia solo do rapper. Diretor musical do disco, Leandro Sapucahy buscou trazer D2 para o habitat musical de Bezerra em vez de “atualizar” o discurso do partideiro com a linguagem e a batida do hip hop em nome de suposta modernidade. Sem DJs, beats e samples, D2 cantou Bezerra da Silva com a intimidade de quem sempre teve na ponta da língua o repertório desse cantor que deu voz a compositores marginalizados, muitos oriundos de comunidades pobres. Esses compositores são autores de letras que sempre soaram como crônicas da vida real desse povo oprimido nas filas, vilas e favelas. Em vez de misturar samba com rap, como fez em álbuns como Eu tiro é onda (1998) e À procura da batida perfeita (2003), D2 “subiu o morro” para tomar partido de Bezerra da Silva com fidelidade ao espírito da obra de um artista que conviveu com o estigma de ser “cantor de bandido” por conta da temática de sambas como Meu bom juiz (Beto sem Braço e Serginho Meriti, 1986) e Bicho feroz (Cláudio Inspiração e Tonho, 1985), cuja gravação de Bezerra – cabe lembrar – já tinha aparecido como citação incidental no registro fonográfico de Porcos fardados (Marcelo D2 e Rafael Lopes, 1995), faixa do primeiro álbum do Planet Hemp, Usuário (1995). Esses dois sambas, Meu bom juiz e Bicho feroz, figuraram entre as 14 músicas selecionadas por D2 no repertório de Bezerra, artista que nos anos 1950 migrou de Pernambuco para o Rio de Janeiro (RJ), onde começou a carreira fonográfica em 1969, tendo sido apresentado como “o rei do coco” em LPs da década de 1970 até se firmar como cantor de partido alto. Nesse gênero, a carreira de Bezerra atingiu pico de popularidade na segunda metade dos anos 1980 com o sucesso Malandragem dá um tempo (Adelzonilton Barbosa da Silva, Moacir Bombeiro e Popular P, 1986), samba evidentemente regravado por D2 neste disco em que o rapper – usuário assumido de maconha, assunto dominante no repertório da banda Planet Hemp – se sentiu em casa ao dar voz a um samba como A semente (Roxinho, Tião Miranda, Felipão e Walmir da Purificação, 1987). Porta-voz de universo endurecido pela luta da vida cotidiana, Bezerra se perfilou em Partideiro sem nó na garganta (Adelzonilton, Nilo Dias e Franco Teixeira, 1992) e celebrou o morro em Saudação às favelas (Pedro Butina e Sergio Fernandes, 1985), samba também abordado por D2 em disco que evidenciou o humor politicamente incorreto de composições como Minha sogra parece sapatão (Roxinho, Tião Miranda e 1000tinho, 1983) – partido alto cantado de forma desinibida por D2 – e Quem usa antena é televisão (Celsinho da Barra Funda e Pinga, 1995). Sempre à vontade no canto desse repertório de linguagem simples, o rapper sambista também rebobinou Pega eu (Criolo Doido, 1979) – primeiro sucesso de Bezerra – e o irreverente samba Na aba (Trambique, Paulinho Correa e Ney Silva, 1982), mais associado a Martinho da Vila, por conta de famosa gravação de 1984, mas a rigor lançado em disco dois anos antes por Bezerra. Crônica de embate conjugal nesse universo popular, o samba A necessidade (José Garcia e Jorge Garcia, 1977) foi cantada por D2 com o produtor do disco, Leandro Sapucahy, como se ambos fossem dois partideiros. Essa e outras faixas foram valorizadas pelo coro do trio feminino de vocalistas – Carla Pietro, Keilla Santos e Neth Bonfim – arregimentadas por Sapucahy para remeter às vozes do conjunto As Gatas, presença marcante em discos de samba das década de 1980 e 1990. Embora pautado por uniformidade linear, o álbum Marcelo D2 canta Bezerra da Silva teve o mérito de expor afinidades temáticas entre os guetos do hip hop e as quebradas dos morros onde imperavam o samba espontâneo de Bezerra da Silva, partideiro que fazia a cabeça de Marcelo D2.