Artista carioca – cujo centenário é festejado nesta quinta-feira, 16 de julho – permanece como uma das referências de canto feminino no Brasil pela união precisa de técnica e emoção. ♪ MEMÓRIA – Existem grandes cantoras, no Brasil e no mundo, que encantam gerações sem impor um padrão a ser seguido quando saem de cena. E existem cantoras ainda maiores que se tornam mães de muitas vozes que se fazem ouvir no eco do canto referencial dessas intérpretes matriciais. Elis Regina (1945 – 1982) foi uma dessas cantoras-mães que, curiosamente, surgiu acalentada no colo de outra cantora-mãe, Angela Maria (1929 – 2018). Gal Costa é cantora-mãe, cujo eco da voz cristalina reverbera até na geração indie projetada nos anos 2010. Marisa Monte levou no colo parte da geração de cantoras que despontaram a partir da década de 1990. Antes de Elis, de Gal e de Marisa, houve Elizete Moreira Cardoso (16 de julho de 1920 – 7 de maio de 1994), contemporânea de Angela e de Dalva de Oliveira (1917 – 1972). Elizete Cardoso (como ela assinou em discos editados na primeira metade dos anos 1960) ou Elizeth Cardoso (como ficou para a posteridade o nome artístico dessa cantora carioca) está sendo lembrada no centenário de nascimento – festejado nesta quinta-feira, 16 de julho de 2020 – por proezas feitas ao longo de trajetória iniciada em 1936 e terminada em 1990 quando câncer de estômago calou, aos 70 anos de vida e 54 anos de carreira, essa voz de contralto surgida e projetada na era do rádio. Entre outros feitos memoráveis, Elizeth ajudou a consolidar compositores dessa era radiofônica, gravou discos históricos – como Canção do amor demais (1958), álbum equivocadamente caracterizado como de bossa nova por ter apresentado a batida do violão de João Gilberto (1931 – 2019) – e contribuiu para a revitalização do choro nos anos 1960 em show e disco com Jacob do Bandolim (1918 – 1969), descobridor e avalista da cantora nos anos 1930. Contudo, a maior proeza de Elizeth Cardoso foi a de ter magnetizado público, cantores e músicos com canto de tom tradicional, pautado pelo rigor estilístico da intérprete e incrementado com vibratos e ênfases nos erres. Elizeth marcou época pela versatilidade do canto que tanto podia soar faceiro em sambas como os de Ary Barroso (1903 – 1964) – compositor recorrente na discografia da Divina – como atingir densas regiões emocionais como as das canções do amor demais de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1990) e Vinicius de Moraes (1913 – 1980). Elizeth Cardoso permanece como referência de canto feminino no Brasil Reprodução / Capa de disco Seja subindo o morro para cantar compositores ligados ao samba, seja escalando as notas da Bachianas nº 5 de Villa-Lobos (1887 – 1959), Elizeth Cardoso nunca saiu do tom. Tampouco fazia questão de soar moderna e de se atualizar com as novidades da música brasileira, embora Elizeth sempre tenha avalizado jovens compositores com a discrição que a caracterizava. Nascida para cantar, ofício para o qual pareceu já ter vindo pronta, Elizeth Cardoso sabia conjugar técnica e emoção sem que uma anulasse a outra, sem que a cantora carregasse no drama – qualidade evidenciada logo no primeiro sucesso do primeiro disco, Canção de amor (Chocolate e Elano de Paula, 1950). Aliás, é curioso notar que Elizeth Cardoso nunca foi cantora de hits. Há, sim, músicas associadas ao canto da artista, casos do samba Barracão (Luís Antonio e Oldemar Magalhães, 1953) e do choro Doce de coco (Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho, 1968). Ainda assim, o que prevaleceu, na carreira de Elizeth Cardoso, foi o conjunto da obra eternizada pela cantora com a privilegiada voz de contralto que roçava o registro de mezzo-soprano e que limpava impurezas das músicas – como sensivelmente observou Joyce Moreno quando, ignorando preconceitos sociais, compôs Faxineira das canções (1986) para celebrar o canto da Magnífica, um dos epítetos atribuídos a Elizeth pelo brilhantismo do canto. Pouco ouvido na década de 1980, esse canto deu voz à parte expressiva da história da música popular do Brasil em obra perene. Ainda envolvida em luz e esplendor, a centenária Elizete Moreira Cardoso conserva em 2020 a mesma idade que tinha em 1950 ou em 1990, permanecendo como uma das referências mais sólidas de canto feminino no Brasil. É a idade das eternas cantoras-mães cujas vozes e obras ecoam nos cantos das muitas filhas que deixaram espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.