Capa do álbum 'Mutantes e seus cometas no país do baurets', de Mutantes Arte de Alain Voss ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Mutantes e seus cometas no país do baurets, Os Mutantes, 1972 ♪ A rigor, o último álbum gravado pelo grupo paulistano Os Mutantes com Rita Lee, Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida, saiu sem o nome da banda, tendo sido apresentado em 1972 como disco solo da cantora. Por contrato, Rita devia um álbum solo ao selo Polydor da gravadora Philips e – como o então diretor da companhia fonográfica André Midani (1932 – 2019) apostava mais na carreira solo da cantora do que nos Mutantes – o grupo abriu mão de assinar aquele que foi o último real álbum de Rita Lee com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Por força dessas circunstâncias mercadológicas, o derradeiro álbum oficial do grupo com a cantora acabou sendo Mutantes e seus cometas no país do baurets, lançado anteriormente em maio daquele mesmo ano de 1972. Cultuado com o decorrer do tempo, com a devoção estendida à toda a discografia da fase inicial dos Mutantes, o álbum Mutantes e seus cometas no país do baurets surtiu pouco efeito nas paradas na época em foi posto nas lojas com capa que expôs arte de Alain Voss (1946 – 2011), pintor francês que já criara outras capas para o grupo. Tanto que, quando Ney Matogrosso regravou em 1986 a música mais conhecida do repertório do disco, Balada do louco (Rita Lee e Arnaldo Baptista), a composição soou inédita para o (vasto) público que desconhecia não somente a gravação original – feita pelos Mutantes com evocação do universo musical dos Beatles – como também a origem e a importância desse trio formado na cidade de São Paulo (SP) em 1966, tendo sido batizado pelo cantor Ronnie Von, em outubro daquele ano de 1966, quando Arnaldo, Rita e Sérgio eram atrações do programa de TV O pequeno mundo de Ronnie Von. Embrião dos Mutantes, o grupo O'Seis surgira em 1966 como sexteto que incluía na formação os paulistanos Arnaldo, Rita e Sérgio – trio que se tornaria o tripé que sustentou toda a aura criada em torno dos Mutantes no reino antropofágico da Tropicália. Estruturado profissionalmente como trio a partir de 1967, o grupo Os Mutantes fez história ao acompanhar Gilberto Gil na defesa de Domingo no parque (Gilberto Gil) no festival daquele ano de 1967 em que foi armada a revolução tropicalista, com Caetano Veloso e Gil à frente da organização do movimento. Tanto que o trio conquistou o direito de figurar na capa e no elenco do coletivo álbum-manifesto do movimento Tropicália ou Panis et circensis, lançado em 1968. Com mistura bem dosada de irreverência e psicodelia, o trio deu sotaque nacional ao rock, mixando guitarras com deboche, latinidade e música brasileira. Todo esse coquetel foi bem batido nos cinco álbuns – Os Mutantes (1968), Mutantes (1969), A divina comédia ou ando meio desligado (1970), Jardim elétrico (1971) e Mutantes e seus cometas no país do baurets (1972) – que garantiram ao grupo a imortalidade e a estima em nichos do Brasil e do exterior em culto justificado sobretudo pelo primeiro disco, turbinado com músicas de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor. A esses discos, se somou em 2000 um sexto álbum, Tecnicolor, gravado em Paris trinta anos antes, em 1970, e dado como perdido até ser descoberto em 1996 nos arquivos da gravadora então denominada Polygram. Quando Tecnicolor foi lançado, em abril de 2000, Rita já estava há 28 anos magoada com Arnaldo Baptista e Sérgio Dias por conta da ruidosa saída da cantora do grupo, ao fim daquele ano de 1972 – fato ainda hoje alvo de versões contraditórias. A cantora sempre sustentou que foi expulsa, mas há quem tenha afirmado – como Liminha, baixista que integrava o grupo na época da gravação do álbum Mutantes e seus cometas no país do baurets – que foi Rita quem anunciou a saída da banda em acesso de fúria durante discussão com o então namorado Arnaldo. Versões à parte, o fato é que o álbum Mutantes e seus cometas no país do baurets ficou para a posteridade como o último registro fonográfico oficial do trio Arnaldo-Rita-Sérgio. Na composição desse trio, Arnaldo entrou com a musicalidade viajante e Sérgio contribuiu com o virtuosismo técnico no toque da guitarra. Já Rita acentuou a anarquia com a doçura pop da voz e com o star quality que sempre faltou aos irmãos Baptista. O disco de 1972 combinou todos esses elementos, tendo sido gravado em 1972 com as adesões de Arnolpho Lima Filho (o Liminha) no baixo e de Ronaldo Leme (Dinho Leme, na certidão artística) na bateria. O título Mutantes e seus cometas no país do baurets perpetuou gíria – bauret – criada e usada pelo cantor Tim Maia (1942 – 1998) em festival de rock na cidade paulista de Bauru (SP) que tinha Os Mutantes entre as atrações. Ao longo das 10 faixas do álbum, havia ironia na incursão pelo universo musical cubano em Cantor de mambo (Elcio Decário, Arnaldo Baptista e Rita Lee) – faixa-farpa também disparada contra Sergio Mendes, embaixador da bossa nova nos Estados Unidos – e na declaração de amor canino feita em Vida de cachorro (Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias), balada ternamente cantada por Rita Lee. Também havia devoção ao rock'n'roll básico dos anos 1950, de batida evocada na música que abriu o disco, Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o rock'n'roll (Rita Lee, Liminha e Arnaldo Baptista). O espírito do rock também moveu Dune buggy (Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias), A hora e a vez do cabelo nascer – música creditada a Liminha e Mutantes, originalmente intitulada Cabeludo patriota, nome vetado pela censura por identificar gozação com o nacionalismo exacerbado do Brasil da era militar dos anos 1970 – e Beijo exagerado (Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias). Esse tema de pegada stoniana foi emendado, na costura do repertório, com Todo mundo pastou (Ismar S. Andrade, Bororó), sátira à música caipira, alocada como vinheta repetida ao fim do álbum. Única regravação do repertório inédito do álbum Mutantes e seus cometas no país do baurets, Rua Augusta (Hervé Cordovil, 1964) – rock lançado há então oito anos pelo cantor Ronnie Cord (1943 – 1986) – soou como tributo dos Mutantes aos primórdios do rock brasileiro. Já a música-título, de longos nove minutos e 49 segundos, de certa forma sinalizou a investida futura do grupo pelo rock progressivo em discos feitos pelos Mutantes após a saída de Rita Lee. Sem a luz e a voz de Rita Lee e sem a alma de Arnaldo Baptista (tecladista que debandou em 1973 e lançou aclamado álbum solo em 1974), o grupo sobreviveu até 1978, ano em que se dissolveu melancolicamente. O pomposo retorno de 2006 – com Arnaldo, mas sem Rita no posto de vocalista ocupado por Zélia Duncan – perdeu fôlego já em 2007. Contudo, o grupo desde então jamais saiu de cena, sendo liderado pelo resistente Sergio Dias. Por mais que o nome Mutantes ainda garanta visibilidade ao grupo, todo mundo sabe que a aura em torno do grupo é alimentada pela fase com Rita Lee, encerrada neste Mutantes e seus cometas no país do baurets, álbum que marcou o fim oficial da viagem em 1972.