As medidas de isolamento destruíram as finanças de muitos trabalhadores de baixa renda, mas aqueles que têm empregos que lhes permitem trabalhar em casa foram transformados em poupadores involuntários. As medidas de isolamento tiveram um impacto direto nos empregos, atingindo mais fortemente os trabalhadores de baixa renda AFP Se você está trabalhando de casa durante essa pandemia, é provável que esteja gastando menos com transporte e alimentação fora de casa. Ao mesmo tempo, milhões de trabalhadores tiveram seus salários reduzidos, ou pior, perderam completamente seus empregos e salários. A pandemia trouxe uma situação estranha que, segundo economistas, não tem paralelo em recessões anteriores. Ela criou "uma divisão nas finanças domésticas", diz Neil Shearing, economista-chefe da Capital Economics. "Uma parte da população sofreu perda de renda ou vive sob ameaça de uma perda iminente de renda, enquanto outra está cheia de dinheiro graças a um aumento grande e involuntário de poupança." Economia surpresa Rebecca O'Connor, especialista em finanças pessoais na Royal London e fundadora do site Good With Money, disse à BBC que a realidade financeira das pessoas "está muito diferente agora" e, para alguns, "até economizar uma pequena quantia parecerá quase impossível". No entanto, profissionais como ela se beneficiaram de uma queda "considerável" nos gastos. Sem ter de pagar gasolina para levar crianças para a escola ou viajar duas horas em transporte público, ela economiza US$ 450 (R$ 2,4 mil) por mês. Ela acredita que não comprar cafés na rua, não sair para beber após o trabalho ou almoçar fora de casa representa uma economia de mais cerca de US$ 100 por mês, o equivalente a R$ 540. A lista continua e inclui economias em guloseimas e passeios aos fins de semana. Realidades contrastantes Mas casos como o dela não são raros. Algumas pessoas que foram surpreendidas pelas medidas de isolamento no Reino Unido disseram que gastarão o dinheiro com coisas com as quais sonham, como um casamento extravagante ou uma longa viagem pela Ásia. Em uma análise em todo o Reino Unido, a Resolution Foundation constatou que uma em cada três famílias de alta renda viu suas economias aumentarem, enquanto uma em cada cinco as viu caírem. Entre as famílias de baixa renda, por outro lado, apenas 10% dizem que suas economias aumentaram, em comparação com 29% que dizem que estão em baixa. As famílias com maior probabilidade de poder trabalhar em casa estão provavelmente entre as mais bem pagas e, portanto, podem economizar dinheiro. Enquanto isso, 20% das famílias de baixa e média renda dizem que aumentaram suas dívidas durante a pandemia, contando com soluções caras, como cartões de crédito e cheque especial. No entanto, O'Connor alerta que ter dinheiro de sobra não deve levar os consumidores a gastar, já que as incertezas ainda pairam sobre a economia global. "A melhor coisa a fazer com dinheiro extra diante da incerteza é deixá-lo em algum lugar facilmente acessível e criar uma reserva", aconselha ela. Impacto da crise "A natureza desta crise é muito diferente das crises financeiras anteriores que vimos, porque o impacto no mercado de trabalho é muito direto", disse à BBC Steven Kapsos, pesquisador da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Enquanto setores inteiros da economia foram paralisados, outras categorias de trabalhadores foram menos afetadas. Segundo a OIT, os empregos no varejo, manufatura, imóveis, hospitalidade e alimentação foram os mais impactados pelas restrições. "Os trabalhadores desses setores e do setor informal não são capazes de realizar as atividades que estavam realizando antes das restrições", afirmou Kapsos. A perda de horas de trabalho soma mais de 300 milhões de empregos em período integral, segundo a OIT. O maior declínio nas horas de trabalho está sendo sentido nas Américas e na Ásia Central (cerca de 13% em cada região) e nos países de baixa e média renda. Mas os trabalhadores mais vulneráveis são 1,6 bilhão de pessoas em empregos informais o que é quase metade da força de trabalho do mundo. 'Pegas de surpresa' Lucimara Rodrigues faz parte desse grupo. A brasileira de 35 anos trabalha como faxineira na região de Boston, nos Estados Unidos, para onde se mudou há 16 anos. Rodrigues disse à BBC que recebia entre US$ 3.500 e US$ 4.000 por mês trabalhando para famílias de alta renda, o que representa cerca de R$ 20 mi. Com o confinamento, no entanto, ela teve que parar de trabalhar por completo. "Nós [faxineiras] fomos pegas de surpresa", disse ela. "Nunca tive uma situação em que tivesse que ficar em casa sem trabalhar por mais de dois meses". O marido de Rodrigues é um construtor cujo trabalho também parou durante a pandemia. O casal tem dois filhos, de 6 e 14 anos. Ela diz que alguns de seus empregadores mostraram "boa vontade" e continuaram a pagá-la, mesmo que ela não pudesse aparecer para trabalhar. A família reduziu as compras de alimentos e está economizando combustível, mas ela diz que suas reservas estão acabando. 'Deixados à própria sorte' Trabalhadores domésticos nos EUA, principalmente imigrantes negros e latinos, são um exemplo de trabalhadores que foram "deixados à própria sorte" durante a pandemia, diz Haeyoung Yoon, diretora de políticas da National Domestic Workers Alliance (NDWA), organização que promove os direitos dos trabalhadores domésticos. A organização financiou uma linha que concede US$ 400 em assistência humanitária a 10 mil pessoas afetadas pela pandemia. Os trabalhadores domésticos geralmente não têm garantias ou benefícios como licença remunerada, licença médica ou seguro de saúde. Em uma pesquisa recente, 70% dos trabalhadores domésticos negros entrevistados disseram que perderam o emprego ou tiveram seus salários reduzidos devido ao confinamento. Dois terços dizem que temem ser despejados ou ter serviços cortados devido à falta de pagamento. No entanto, muitos não conseguiram acesso ao pacote de ajuda de US$ 2 bilhões do governo de Donald Trump, que foi aprovado em março, devido a todas as exclusões feitas a imigrantes e trabalhadores sem documentos. "Eles dizem que o vírus não discrimina, mas os tomadores de decisão do país optaram por discriminar com base em imigração, raça e gênero", disse Yoon à BBC. Aumento da desigualdade O impacto econômico da covid-19 pode levar 100 milhões de pessoas à pobreza extrema em todo o mundo, segundo o Banco Mundial. E o Fundo Monetário Internacional (FMI) está alertando para a necessidade de políticas inclusivas durante a recuperação econômica para evitar um aumento nos já altos níveis de desigualdade. Os governos já gastaram US$ 10 bilhões em medidas para apoiar a economia, mas o FMI diz que precisamos de "esforços extras" para proteger os pobres, incluindo o aumento da ajuda alimentar e da distribuição de renda. Por enquanto, Rodrigues diz que "não está se desesperando". Ela está usando dinheiro de uma reserva para ajudar sua mãe a pagar por tratamento médico no Brasil. Mas essas economias "estão indo rápido" e Rodrigues diz que não tem ideia de quando poderá retomar seu trabalho e salário. "Tenho amigos que economizaram e me disseram que o dinheiro também está acabando", diz ela. "Como tudo isso vai acabar? Eu digo: eu não sei."