Capa do álbum 'Entidade urbana', de Fernanda Abreu Adriana Pittigliani com arte de Luiz Stein ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Entidade urbana, Fernanda Abreu, 2000 ♪ Quando lançou o quinto álbum solo em novembro de 2000, Entidade urbana, Fernanda Abreu já contabilizava dez anos de carreira solo identificada com a miscigenação pop da cidade natal do Rio de Janeiro (RJ), onde nasceu em setembro de 1961. Tanto que, naquela altura, Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu já era a personificação da “garota carioca suingue sangue bom”, assim caracterizada desde que o terceiro álbum solo da artista, Da lata (1995), tinha vindo dar na praia no samba-funk. Álbum de confirmação da identidade miscigenada do pop dançante dessa artista projetada nos anos 1980 como vocalista da Blitz, banda carioca com a qual a cantora encarou de 1982 a 1986 o rolo compressor do sucesso massivo, Entidade urbana tentou estender a geografia da música de Fernanda Abreu – ao longo de 11 faixas produzidas por Liminha com Chico Neves – sem cortar o laço carioca reforçado com o revisionista disco anterior da artista, Raio X (1997), produzido com remixes e registros inéditos. Mesmo sem reeditar a repercussão dos discos anteriores da cantora, tanto no plano artístico como no comercial, o álbum Entidade urbana reiterou a vocação de Fernanda para dar voz a um pop de pista, moderno, com jovialidade que se alimenta do suingue negro do Brasil, sem nacionalismo, e com ouvidos abertos para os sons do mundo. O disco foi formatado com azeitada mistura pop de samba, funk, rap e dance, traduzida pela arte criada por Luiz Stein para a capa e o encarte do CD editado pela EMI, gravadora que apostara no som de Fernanda Abreu desde o primeiro álbum solo da artista. Saudado com entusiasmo por Eumir Deodato (“Segue aqui um dos melhores discos lançados no Brasil nos últimos anos”), autor de um dos textos que apresentaram Entidade urbana aos formadores de opinião, o álbum soou como extensão natural de discografia solo iniciada há dez anos pela artista com o álbum Sla radical dance disco club (1990), pioneiro no uso de samplers que ajudaram Fernanda a cruzar o universo da então desvalorizada disco music com a linguagem do pop dance da época. Na sequência, o álbum Sla 2 – Be sample (1992) reforçou a identidade carioca da artista, jogando samba, funk e rap em caldeirão que traduziu a fervura da mistura sonora e social do Rio de Janeiro (RJ), cidade da qual a música Rio 40 graus (Fernanda Abreu, Carlos Laufer e Fausto Fawcett, 1992) emergiu como hino informal a partir desse disco. Música de maior projeção do álbum Entidade urbana, Baile da pesada apresentou o compositor Rodrigo Maranhão – parceiro de Fernanda na composição e autor do toque do cavaquinho ouvido na faixa – e pôs som na caixa para mapear o circuito fervido da cidade e lembrar o pioneirismo dos DJs Ademir Lemos (1946 – 1998), Big Boy (1943 – 1977) e Monsieur Limá (1943 – 1993) na propagação do som black Rio. Parceria de Fernanda Abreu com Fernando Vidal e com o habitual colaborador Fausto Fawcett (com quem a artista se conectara na segunda metade dos anos 1980, época em que experimentou nos primeiros shows individuais o som do álbum Sla radical dance disco club), o samba-funk Zona Norte – Zona Sul corroborou a ideia de reunir a partida cidade do Rio de Janeiro (RJ) sem bairrismos. Eu quero sol (Fernanda Abreu, Liminha e Sofia Stein) seguiu na mesma onda, expondo o brilhante acabamento instrumental do disco, polimento que por vezes amenizou a sensação de que o repertório de Entidade urbana impactou menos no confronto com safras anteriores da artista. Mesmo continuando assumidamente carioca, a garota suingue sangue bom procurou soar global nesse disco de 2000, conectando várias cidades do mundo. Tanto que Fernanda acenou explicitamente para o povo (e para o mercado) paulista com São Paulo – SP, parceria da artista com Carlos Laufer, Fausto Fawcett e Liminha que soou como tentativa de fazer um “SP 40 graus” ao perfilar Sampa sob ótica carioca. “Tudo é cidade / É tudo igual / Em qualquer língua / Isso é geral”, sentenciou o refrão do samba-funk Sou da cidade, música de Fernanda Abreu com Rodrigo Campello e Liminha que abriu o álbum Entidade urbana. “Toda a terra inteira quer balançar”, reforçou a cantora no samba pop Roda que se mexe, parceria da artista com Rodrigo Campello e Suely Mesquita que ecoou o suingue matricial de Jorge Ben Jor com direito ao violão de Gilberto Gil e ao piano de João Donato. Sem reinventar a roda sincopada da obra de Fernanda Abreu, o álbum Entidade urbana desenvolveu a ideia de extrapolar o circuito carioca sem acrescentar tempero novo e forte na mistura rítmica da artista, em que pese o flerte com o drum'n'bass em Meu CEP é o seu (Rodrigo Campello e Fernanda Abreu). Ao contrário. A rigor, faixas como a frenética Fatos e fotos – composição de Fernanda com o então emergente artista baiano Lucas Santtana – pareceram sintetizar sons, batidas e flashes urbanos dos quatro álbuns anteriores da carreira solo dessa artista que foi a única integrante da Blitz a ganhar real relevância no universo pop quando a piada da banda começou a perder a graça a partir de 1984. Voz das urgências da cidade, Fernanda Abreu traduziu no álbum Entidade urbana a voracidade da selva de pedra. “Toda cidade é uma demência / De excesso concentrado”, cravou a garota carioca em Megalópole – Cidade (Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Fernando Vidal), faixa de alto teor crítico. Parceria de Fernanda Abreu com Lenine, Urbano canibal alinhou identidades múltiplas na letra cantada sob baticum funk-tribal. No fim do álbum Entidade urbana, a balada Paisagem de amor (Fernanda Abrey, Marcelo Lobato e Fausto Fawcett) suavizou o clima com direito a voz de Fausto Fawcett emulando os graves de locutores de FMs que veiculam soul sensual. Curiosamente, o toque suave do violão de Cezar Mendes nessa faixa foi o último som ouvido na alvoraçada paisagem sonora de Entidade urbana, álbum ao qual se seguiu Na paz (2004), título inaugural do selo Garota Sangue Bom. Dois anos depois, em 2006, Fernanda Abreu revisou a trajetória solo em CD e DVD da série MTV ao vivo e, embora tenha se mantido em cena com shows acústicos, a cantora ficou longe do mercado fonográfico por dez anos. O retornou se deu com o revigorante álbum Amor geral (2016), mote de show captado neste ano de 2020, sem plateia, em 13 de março, dia em que o Rio de Janeiro (RJ), cidade tradutora do som da cantora, teve fechadas as portas das casas de shows. Já perto dos 60 anos, a serem festejados em setembro de 2021, Fernanda Abreu prepara disco de remixes (com Corello, Gui Boratto, Memê, Tropkillaz e Zé Pedro, entre outros DJs e produtores) e já vislumbra álbum de músicas inéditas para dar continuidade à carreira solo que completou 30 anos em 2020. Entidade urbana do pop dançante brasileiro moldado nos anos 1990, Fernanda Abreu continua na pista.