Capa do álbum 'Claro', de Luiz Melodia Maurício Cirne ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Claro, Luiz Melodia, 1987 ♪ “O que eu quero é funkear”, avisou Luiz Melodia em verso de Saco cheio, dando a pista da levada da música então inédita de Tony Marinho que o cantor apresentava no sexto álbum da carreira, Claro, lançado em 1987 pela gravadora Continental. Naquela altura, o Brasil já tinha entendido que o carioca Luiz Carlos dos Santos (7 de janeiro de 1951 – 4 de agosto de 2017) extrapolara o molde do sambista no qual a indústria do disco tentou em vão enquadrar o cantor e compositor por ele ter nascido e se criado no Morro do São Carlos, no bairro do Estácio, celeiro de bambas seminais dos anos 1920. Melodia até cantou (bons) sambas no álbum Claro e, em um deles, O menino, deu alô para a “rapaziada do São Carlos e do Estácio”, como explicitou na fala introdutória da faixa. Mas fez isso com a consciência de que nunca esteve confinado em fronteiras musicais. Sim, Luiz Melodia cantava samba com orgulho da origem, mas, na obra miscigenada do compositor, o samba do Estácio representou ponte que o levou a cruzar os universos musicais do blues, do rock, do soul, do choro, do funk e do iê-iê-iê romântico da Jovem Guarda. Esse amálgama sem precedentes na música do Brasil já tinha sido assimilado pelo público mais antenado que ouvira o primeiro álbum do cantor, Pérola negra (1973), gravado e lançado no embalo da repercussão obtida com a inclusão da música-título desse disco no roteiro de Fa-tal – Gal a todo vapor (1971 / 1972), cultuado show de Gal Costa. Na sequência da luxuosa apresentação do compositor por Gal, Maria Bethânia lançou o samba Estácio, Holy, Estácio no álbum Drama (1972), o que abriu mais portas para Luiz Melodia. Indomado pela própria natureza artística, livre de amarras mercadológicas, Melodia fechou algumas dessas portas em trajetória que legou para a posteridade álbuns como Maravilhas contemporâneas (1976), Mico de circo (1979), Nós (1980) e Felino (1983). Quando entrou em estúdio para gravar Claro, álbum produzido por Sérgio Mello sob a direção artística de Jairo Pires, Melodia já estava há quatro anos sem lançar álbum e carregava o rótulo de “maldito” que, nos anos 1970, a indústria do disco tinha posto nele e em companheiros de geração igualmente indomados como Jards Macalé e Sérgio Sampaio (1947 – 1994). No caso de Melodia, a “maldição” mercadológica somente seria (temporariamente) dissolvida no fim dos anos 1990 com a gravação e edição do revisionista álbum Acústico ao vivo (1999), título best-seller da discografia espaçada, mas coerente, do artista. Editado sem repercussão, o álbum Claro nem de longe trouxe para Luiz Melodia um sucesso do quilate de Presente cotidiano (1973), Ébano (1975), Congênito (1975), Juventude transviada (1976) e Fadas (1978) – músicas que ajudaram a popularizar a obra do compositor nas vozes do autor e/ou de cantoras como Gal Costa e Zezé Motta. Contudo, o álbum Claro apresentou músicas que, em contexto mais favorável para o artista, teriam cacife para figurar em qualquer antologia de Luiz Melodia. Samba-funk arranjado com metais em brasa, com balanço aliciante, Revivendo (Luiz Melodia e Perinho Santana) é a joia rara escondida há 33 anos no baú do álbum Claro. “Prazer, memória está sadia”, saudou Melodia nessa música luminosa, com a voz aveludada que teria credenciado o cantor a seguir carreira somente como intérprete se assim tivesse desejado – como provou o sucesso, em 1991, da regravação por Melodia da canção Codinome beija-flor (Reinaldo Arias, Cazuza e Ezequiel Neves, 1985). No álbum Claro, outra música se insinuou reluzente, mesmo com parte do brilho empanado pelo arranjo criado à moda tecnopop dos anos 1980. Trata-se de Decisão, música de Melodia com Sérgio Mello que Zezé Motta regravou 24 anos depois em álbum, Negra melodia (2011), em que irmanou os cancioneiros de Melodia e Macalé. Na gravação original feita por Melodia em Claro, Decisão soou quase como balada romântica, embora se insinuasse como samba. Mesmo que alguns arranjos nem sempre tenham feito jus às músicas, por contingências do mercado da época, o álbum Claro ofereceu ótima amostra do talento do compositor. Se Seja amar (Luiz Melodia e Ricardo Augusto) apresentou melodia sinuosa valorizada pelo canto do artista, com direito a floreios vocais ao fim da gravação, Verão tropical (Papa Kid e Indiano) soou supercarioca. O ouriço de O que é que é isso? (Luiz Melodia) se alinhou com o tom serelepe do samba-choro Malandrando (Luiz Melodia, Perinho Santana e Silvio Lemos). A pegada dessa faixa autobiográfica ecoou a mistura brasileira do grupo Novos Baianos, mas com o tempero particular de Melodia. Duas regravações completaram o repertório do álbum Claro com absoluta fidelidade à ideologia musical de Luiz Melodia. Que loucura (1976) se revelou samba de andamento ágil e jazzificado no arranjo em que Melodia surfou no ritmo ao cair com destreza no suingue da faixa. A música foi pinçada por Melodia do repertório do segundo álbum do companheiro de geração e “maldição” Sérgio Sampaio. Já o rock Broto do Jacaré (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1964) soou vintage em acerto de contas de Melodia com a memória afetiva do adolescente do Morro do São Carlos que, em 1965, assistia Roberto Carlos mandar tudo para o inferno nas jovens tardes de domingo – ainda que Broto do Jacaré tenha sido apresentado por Roberto um ano antes da estreia do programa de TV Jovem Guarda (1965 / 1968). Após Claro, Luiz Melodia gravou mais nove álbuns em discografia encerrada (em vida) com o álbum Zerima (2014), lançado três anos antes do artista sair de cena aos 66 anos. Totalizando 15 álbuns lançados entre 1973 e 2015, essa discografia geralmente é enfocada somente na fase áurea dos anos 1970 por quem desconhece as pérolas negras incrustadas em álbuns como Claro, retrato feliz do artista em fase de menor visibilidade.