Capa do álbum 'Miúcha', de Miúcha Márcia Ramalho ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Miúcha, Miúcha, 1988 ♪ Em 1968, sete anos antes de se lançar profissionalmente como cantora com a gravação de compacto duplo editado em 1975, Heloísa Maria Buarque de Hollanda (30 de novembro de 1937 – 27 de dezembro de 2018) residia em Nova York (EUA) quando o dionisíaco encenador de teatro José Celso Martinez Corrêa a presenteou com disco da cantora norte-americana Billie Holiday (1915 – 1959). Ao ouvir o disco, Heloísa – Miúcha, para a família, os amigos e, no futuro, para o Brasil – se encantou com a abordagem do standard jazzístico Solitude (Duke Ellington, Eddie DeLange e Irving Mills, 1934) por Billie. Um tempo depois, ao conhecer Albert Dailey (1939 – 1984), Miúcha se aventurou a registrar Solitude em fita com o toque desse pianista norte-americano de jazz. Vinte anos depois, a fita foi encontrada e, uma vez restaurada, a gravação seminal de Miúcha se transformou na sétima das 11 faixas do quinto álbum da cantora carioca, Miúcha, lançado em 1988 pela gravadora Continental. A bem da verdade, esse belo álbum Miúcha podia até ser considerado o sexto da artista, já que, por questões jurídicas entre gravadoras, a cantora nunca recebeu oficialmente o devido crédito pela relevante participação vocal no disco The best of two worlds – Stan Getz e João Gilberto (1976), o real álbum de estreia de Miúcha. Gravado sob direção musical do violonista Luiz Claudio Ramos, autor dos arranjos de criação dividida com o pianista Cristovão Bastos, o LP Miúcha de 1988 foi – de todo modo – o segundo álbum solo da cantora. O primeiro desde o álbum de 1980 também intitulado Miúcha. É que, em 1988, com meros 13 anos de carreira fonográfica, Miúcha já tinha tido a primazia – aliás, uma proeza única na história da música brasileira – de ter assinado três álbuns com Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994). Dois foram gravados em estúdio pela cantora com o maestro e lançados em 1977 e 1978. Entre um e outro álbum, houve disco ao vivo que perpetuou show feito em 1977 por Miúcha e Tom Jobim com Vinicius de Moraes (1913 – 1980) e Toquinho. Aliás, a atmosfera da bossa nova e a soberania da música de Tom Jobim foram evocadas e citadas pelo álbum Miúcha no estupendo arranjo de Saudosismo (Caetano Veloso, 1968). Em registro cheio de nostalgia, a regravação de Saudosismo juntou Miúcha com a filha Bebel Gilberto, então em início de carreira – tendo lançado em 1986 EP com parceiras com Cazuza (1958 –1990) e Dé Palmeira – e soando imatura nessa participação premonitória da associação de Bebel com a bossa carioca que ela repaginaria em moderna ambiência eletrônica apresentada ao mundo no ano 2000. Desde então, Miúcha também passou também a ser “a mãe de Bebel Gilberto”, além de continuar sendo a “irmã de Chico Buarque” e a “ex-mulher de João Gilberto” (1931 – 2019) aos olhos de quem ignorava, por desconhecimento ou maldade, que Miúcha era também cantora interessante, dona de discografia coerente, diluída ao longo da década de 1990 com a feitura de um único álbum de estúdio para o Japão, Rosa amarela (1997), mas retomada nos anos 2000 a partir do ingresso da cantora na gravadora Biscoito Fino. Ao ser lançado em 1988, o álbum Miúcha reiterou a importância e a beleza dessa discografia pautada pelo bom gosto. Basta lembrar que ninguém menos do que o cantor e compositor cubano Pablo Milanés figurou na abertura do disco, dividindo com Miúcha a interpretação de Buenos dias, América, então recente salsa que batizara álbum lançado por Milanés em 1987. A gravação caiu no suingue cubano e culminou em clima de jam latin session. Compositora bissexta de músicas como Todo amor (1980) e No Carnaval de Olinda (1982), Miúcha assinou a letra de Para viver, versão em português de outra música Pablo Milanés, Para vivir (1976), canção elevada no disco pelo arranjo celestial do pianista Helvius Vilela (1941 – 2010). Helvius foi um dos virtuosos músicos arregimentados para a feitura desse álbum que consumiu dois anos entre a idealização e a efetiva gravação, como Miúcha ressaltou em um dos elucidativos textos que escreveu para o encarte do LP de 1988. Mesmo gravitando em volta das tradições da MPB, como mostrou a gravação do então inédito samba Iaiá (Cristovão Bastos e Paulo César Pinheiro, 1988), Miúcha surpreendeu ao transformar Anjo exterminado (Jards Macalé e Waly Salomão, 1972) em samba sincopado que evoluiria bem em salão de gafieira. Evocações modernas do passado da música brasileira também saltaram aos ouvidos nas quatro então inéditas parcerias de Guinga com Paulo César Pinheiro incluídas no repertório do álbum Miúcha. A melhor abordagem foi a de Nonsense, valsa à moda francesa em cuja gravação a cantora valorizou a letra engenhosa em que Pinheiro, escrevendo em bom português, evocou com precisão a sonoridade de língua francesa. Miúcha também se saiu bem ao seguir o ágil andamento do moderno choro Chorando as mágoas. Já a interpretação de Porto de Araújo se ressentiu da falta de dramaticidade, a rigor inexistente no canto de Miúcha. Com a leveza da bossa, o samba Por gratidão completou o lote de parcerias de Guinga e Paulo César Pinheiro apresentadas por Miúcha no álbum lançado três anos antes de a MPB descobrir Guinga e incensar o compositor pela parceria com Aldir Blanc (1946 – 2020). Uma quinta música de Guinga e Pinheiro, Fonte abandonada, gravada pela cantora em 2003 em registro até então inédito em disco, apareceu na caprichosa segunda edição em CD do álbum Miúcha, idealizada por Heron Coelho para celebrar os 40 anos de carreira da cantora e editada em 2015 pela Warner Music, detentora do acervo da gravadora Continental (a primeira desleixada edição em CD tinha saído em 1994). Na disposição do LP original de 1988, a regravação da Valsa dos músicos (Uma só família) (Mutinho e Vinicius de Moraes, 1981) encerrou o álbum Miúcha com a classe dessa cantora que, citando versos da letra da valsa, em 2018, aos 81 anos, “subiu para o infinito astral pelos degraus de um som”, deixando no plano terreno uma família musical que extrapolou os nobres laços de sangue da artista.