Escrita sem rigor cronológico, narrativa oferece visão extremamente pessoal e afetuosa da vida pré-fama da cantora mineira. Capa do livro 'Clara Nunes nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita' Divulgação Resenha de livro Título: Clara Nunes nas memórias de sua irmã Dindinha Mariquita Autores: Maria Gonçalves da Silva e Josemir Nogueira Teixeira Editora: Jaguatirica Cotação: * * 1/2 ♪ Treze anos após a edição da reveladora biografia Clara Nunes – Guerreira da utopia (2007), escrita por Vagner Fernandes sob a ótica da imparcialidade jornalística, surge outro livro sobre a cantora mineira nascida com o nome de Clara Francisca Gonçalves (12 de agosto de 1942 – 2 de abril de 1983). Lançado neste primeiro semestre de 2020, Clara Nunes nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita oferece recorte literalmente mais familiar da artista. Trata-se de relato afetuoso de Maria Gonçalves da Silva (29 de janeiro de 1931 – 10 de maio de 2017), a Dona Mariquita, irmã mais velha da cantora que assumiu o papel de mãe na criação de Clara a partir dos quatro anos de idade da menina, órfã de mãe e pai já na infância. Dindinha – como Dona Mariquita era carinhosamente chamada por Clara – morreu há três anos sem ter visto editado o livro que idealizara em 2006, mas tendo tido tempo de aprovar a organização final do texto assinado com Josemir Nogueira Teixeira. Estruturado, revisado e formatado por Josemir para o livro viabilizado pelo Instituto Clara Nunes, o relato em primeira pessoa de Dona Mariquita foca Clara pela lente do amor maternal em narrativa estritamente pessoal, construída sem rigores biográficos, sem objetividade jornalística e sem a intenção de soar imparcial. Com fotos raras do acervo da família, pesquisadas e selecionadas por Marlon de Souza Silva, o livro perpetua o jorro reverente das memórias de Dona Mariquita, imprecisas como, a rigor, são todas as memórias baseadas nas impressões capturadas (e editadas) pela mente humana. Escrito com moderada fluidez, na primeira pessoa, o texto expõe fragmentos da vida e da família de Clara Nunes. Sem rígida cronologia, a autora conta passagens das vidas dos pais e dos irmãos (não somente de Clara), contextualizando a origem familiar e social da irmã que ganharia projeção na década de 1970 como uma das mais luminosas cantoras da história da música brasileira. O nascimento de Clara – sétima filha de família numerosa – é assunto do sétimo dos 38 capítulos do livro, mas, antes de entrar nesse assunto, a narrativa já fala de ida do compositor Paulo César Pinheiro à cidade mineira de Cedro (atualmente Caetanópolis), terra natal de Clara, de quem Pinheiro foi marido e produtor de álbuns relevantes da cantora em conexão profissional iniciada com o disco Canto das três raças (1976), um ano após o casamento. Nesse vaivém do tempo do relato de Dona Mariquita, a narrativa salpica detalhes da vida pré-fama de Clara, como o fato de ela ser “namoradeira” (nas palavras da autora) e como a aflorada vaidade adolescente da mineira louca por roupas, sem atenuar a impressão de que, sobretudo na primeira metade, o texto parece estar mais centrado no cotidiano da família Gonçalves do que na vida em si de Clara. A bem da verdade, o relato de Dona Mariquita precisava ser editado com maior rigor. A narrativa do capítulo 20, por exemplo, resulta confusa para quem desconhece previamente o fato de que, em 3 de setembro de 1957, um irmão da cantora, José Pereira Gonçalves, conhecido como Zé Chilau, matou a facadas Adilson Alvarez da Costa, jovem de 17 anos que cortejava Clara. A alegação do crime foi a “defesa da honra” da então adolescente irmã Clara. No livro, Mariquita revela o que acredita ser o desfecho feliz do caso, com a suposta reconciliação de Adilson e Zé Chilau no plano espiritual. A partir do capítulo 22, o relato de Mariquita se concentra em impressões sobre fatos curiosos dos bastidores da vida profissional da irmã cantora, como a ida do médium mineiro Chico Xavier (1910 – 2002) a uma apresentação do show Brasileiro, profissão esperança (1974), por exemplo. São causos narrados com ralo senso crítico e sob ótica pessoal, o que paradoxalmente valoriza o livro sem torná-lo exatamente relevante e muito menos indispensável para quem já adquiriu a biografia de 2007, essencial para a compreensão da trajetória luzidia de Clara Nunes. Ainda assim, merece menção o relato da definidora gravação do samba Ê baiana (Baianinho, Ênio Santos Ribeiro, Fabrício da Silva e Miguel Pancrácio, 1971), testemunhada por Mariquita no estúdio da Odeon, gravadora que, de acordo com o livro, manifestou certa resistência à conversão de Clara ao samba em mudança arquitetada pelo radialista e produtor musical Adelzon Alves, sacralizado nas memórias da autora. Em essência, o livro Clara Nunes nas memórias de sua irmã dindinha Mariquita imortaliza o amor de uma mãe-irmã por uma filha.