Capa do álbum 'Metades', de Leci Brandão Januário Garcia ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Metades, Leci Brandão, 1978 ♪ Em 1978, ano em que lançou o quarto álbum, Metades, Leci Brandão fez história ao se tornar a primeira cantora famosa do Brasil a assumir a homossexualidade. “A gente já é marginalizado pela sociedade. Então a gente se une, se junta e dá as mãos. E um ama o outro sem medo e sem preconceito. Quero que as pessoas enxerguem meu lado homossexual como uma coisa séria, que haja respeito”, reivindicou a cantora e compositora carioca em entrevista publicada em novembro de 1978 na sexta edição do militante jornal Lampião da Esquina, direcionado ao público homossexual. Para quem já seguia a trajetória de Leci Brandão da Silva, cidadã brasileira, negra, nascida em 12 de setembro de 1944 na cidade do Rio de Janeiro (RJ), a postura assumida e libertária da artista já havia sido detectada em músicas dos álbuns Questão de gosto (1976) e Coisas do meu pessoal (1977), cujo repertório destacou Ombro amigo, composição solidária aos gays ainda em processo de aceitação da homossexualidade. Esses dois discos haviam sido lançados pelo mesmo selo, Polydor, que editou Metades, álbum produzido por Paulo Debétio, parceiro de Paulinho Rezende na criação da composição-título Metades, balada típica de hitmakers de gravadoras, mas fiel à ideologia da cantora. Pelo pioneirismo na exposição da vivência homoafetiva, Leci Brandão sofreu discriminações na escola de samba Mangueira – em cuja ala de compositores tinha sido admitida em 1972, sendo a primeira mulher a integrar a turma de bambas da agremiação verde-e-rosa – e na própria indústria fonográfica. Mas resistiu e seguiu firme na carreira iniciada em 1968 com participação no programa de calouros A grande chance (TV Tupi), tendo vencido na categoria dedicada aos compositores. Descoberta como cantora nas rodas de samba do Teatro Opinião, onde ingressara em 1973, ano em que também ganhou projeção como compositora do samba Quero sim (feito com Darcy da Mangueira), Leci debutou no mercado fonográfico em 1974 com a edição de compacto duplo (single com quatro músicas) editado via Marcus Pereira, gravadora que lançou em 1975 o primeiro álbum da cantora, Antes que eu volte a ser nada. Quando apresentou o álbum Metades, em dezembro de 1978, Leci Brandão já tinha bom trânsito no meio musical, inclusive fora das rodas de samba – a ponto de ter feito parceria com Rosinha de Valença (1941 – 2004) em Natureza, música que temperou o LP Metades com cheiro verde de mato, bem ao gosto de Rosinha. A violonista, a propósito, integrou o time de arranjadores do disco ao lado de Antonio Adolfo, Luiz Roberto, Paulo Moura (1932 – 2010), Roberto Menescal e Sérgio de Carvalho (1949 – 2019). Os arranjos do álbum Metades aproximaram Leci do universo da MPB sem cortar a ligação da cantora com o samba. No confronto com os álbuns antecessores Questão de gosto (1976) e Coisas do meu pessoal (1977), o LP Metades resultou menos autoral sem deixar de ter a identidade de Leci Brandão. Alocado na abertura batuqueira do lado A, o partido alto Santas almas benditas (Clareia) professou a fé sincrética – com ênfase nas saudações às divindades de religiões afro-brasileiras – que afloraria com maior intensidade na discografia de Leci a partir dos anos 1980. Faixas valorizadas por expressivos arranjos, o samba-canção Isso acontece (Zé Maurício e Antônio Cláudio) e a canção Tua (Ivan Botticelli e Carlos Colla) expiaram dores e gozos de amores com romantismo. Esse romantismo seria diluído por Leci ao longo de discografia que perderia densidade quando, cinco anos após o álbum Essa tal criatura (1980), LP que encerrou o vínculo da artista com a gravadora Polydor, a cantora retomou a carreira fonográfica em 1985 em gravadora de menor porte, a Copacabana, por onde lançou o álbum Leci Brandão (1985), feito já no embalo da explosão do pagode carioca no mercado. No álbum Metades, lançado oito anos antes, o samba ainda não era no fundo de quintal. Mas a animação do samba Troca (Leci Brandão e João Nepomuceno) encerrou o lado A do LP Metades com cadência bonita que lembrou que Leci Brandão era voz vinda dos terreiros e pagodes da vida carioca. Em tom mais sentimental, o bolero Bela fatal abriu o lado B e a parceria de Antonio Adolfo com Paulo André Barata e Ruy Barata, compositores que tinham obtido projeção com músicas gravadas por Fafá de Belém em 1977 (Foi assim e Pauapixuna). Na sequência, com arranjo orquestral, a cantora deu voz a uma composição de Ivan Lins, Nesse botequim, apresentada pelo autor há três anos no álbum Chama acesa (1975). Com opulência orquestral ainda maior, Morena travessa (Paulinho Cavalcanti e Paulo Bruce) exalou mineirice à moda da época, com evocações do cancioneiro pop do Clube da Esquina. Já a suave canção Morenando trouxe a assinatura de Sandra de Sá, então ainda desconhecida do público, mas já enturmada no meio de cantoras e compositoras ligadas por toda forma de amor. Sozinha, Leci Brandão assinou somente uma música no álbum Metades, Ferro frio, composição (inspirada em caso amoroso da artista) que nunca mais regravou. Em parceria com Paulo Moura e Zezinho Moura, a compositora assinou Mesa para um só, música que fechou Metades, álbum que – embora não tenha mostrado a artista por inteiro, uma vez que interferências da gravadora já se fizeram notar na seleção do repertório e no tom de alguns arranjos – ajudou a propagar o canto livre e assumido da cidadã Leci Brandão da Silva.