Nova geração de MCs deixa de lado versos sobre 'sentar e quicar' e sobe nas paradas com músicas emotivas sobre vida na favela, com toque religioso e moto como símbolo de superação. Cenas do clipe de 'Eu achei', do MC Paulin da Capital. Ele acorda, lê a Bíblia, abraça a avó, tem a moto roubada, sai com os amigos para procurar e comemora quando acha. Evangélico, Paulin é figura de uma nova geração com letras menos festivas e mais voltadas à realidade das favelas, em que a moto costuma ser símbolo de superação Divulgação MC Paulin da Capital acorda, dá um beijo em um crucifixo e outro na chave de sua moto. Ao sair de casa, é enquadrado pela polícia injustamente, só por ser da favela. No fim, ora a Deus para recuperar seu grande amor de duas rodas. O clipe descrito acima, da faixa "Ô meu robô" (gíria para moto), é a cara de uma nova geração de MCs que renova o funk de SP. Ficam para trás letras sensuais sobre "sentar e quicar", que dominavam o gênero há vários anos. O estilo conhecido como "funk consciente" se reinventa e ganha força. Os MCs Paulin da Capital, Lipi e Lele JP têm as vozes mais ouvidas hoje deste funk melodioso que fala sobre a vida difícil na favela, com ecos de louvor religioso. A moto é símbolo comum de superação. O centro da cena é uma produtora chamada Love Funk, na Zona Leste da capital. Treze das cem músicas mais tocadas no YouTube no Brasil entre 29 de maio e 4 de junho no Brasil são dessa nova leva emotiva do funk consciente. "Sou vitorioso" chegou ao 6º lugar nacional nas vozes de Lele JP e de Neguinho do Kaxeta, veterano da geração anterior do "consciente" de SP. A coisa ficou séria O funk paulista está menos festivo e mais sério. Ainda há espaço para sexo e ostentação, mas eles não são mais os temas centrais, como nas duas ondas anteriores do estilo. Há até uma aproximação com o rap em letras combativas, como a do hit em ascensão "Vergonha pra mídia". Outro sucesso é "Eu achei", também do MC Paulin. Aqui, ele acorda, lê uma Bíblia, fuma um baseado, abraça a avó e chora ao ver que sua moto foi roubada. "Cês levou meu pão de cada dia", lamenta. O drama tem tudo a ver com a cidade carregada pelo trabalho mal pago de jovens entregadores. O final é feliz: "Graças a Deus eu achei", canta MC Paulin. A moto estava "no lugar que não entra polícia". Um mundo duro e injusto, marcado pelo crime, de onde eles tentam sair, marca as letras e a vida dos MCs. No lugar da euforia de hits passados, entram a tristeza e a busca por redenção. Hit vitorioso e autobiográfico “A gente revolucionou a parada", diz o MC Lele JP, de 18 anos, sobre esse novo funk consciente. "Deus colocou os moleques para mudar isso daí." Ele frequenta desde criança a Igreja Evangélica Vales das Bênçãos, do Jardim Peri, Zona Norte. A tal revolução não foi fácil na vida de Lele. “Fui pai dos 15 para os 16 anos. Não podia depender da minha mãe e do meu pai, porque eles já carregavam uma responsabilidade imensa. Cuidavam dos meus sobrinhos, de mim, dos meus sete irmãos”, ele conta O pai adolescente se viu sem saída. “Para um moleque de comunidade, não tem muita opção”, diz Lele. Ele conta que foi procurar trabalho "na boca". “Fiquei sem chão e minha filha ia nascer. Eu tive que me envolver na 'vida loca'. Meu maior medo era me prender naquilo.” A saída para o caminho que ele não queria foi pelo funk, conta Lele. “Um empresário viu um vídeo meu, gostou, e me trouxe para perto”, ele conta. O hit “Sou vitorioso” conta os três capítulos: a dificuldade (“A marmita era 15 / Não tinha um real no bolso”), a escolha errada (“Os menor sem opção / Solução é ir pra boca”) e a superação (“O jogo virou / Deus abençoou / Todos têm o livre arbítrio / Eu escolhi ser cantor”). “Muitas pessoas hoje estão com um ponto de interrogação: o que eu vou fazer? Essa música é um testemunho de que Deus é a solução. E serve como inspiração”, diz Lele. A filha, Ana Clara, já tem 2 anos, e agora ele espera o segundo filho, Ravi. “Comunidade não é um lugar muito visto. Poucos sabem o que se passa ali. O que precisa é projeto social. Oportunidade para a molecada”, conclui o cantor de “Sou vitorioso”. MC Lele JP com a filha, Ana Clara Reprodução / Instagram do cantor 'Forrest Gump' consciente A letra autobiográfica de "Sou vitorioso" também exalta o parceiro da própria faixa: “O Lele era mente / Se espelhava no Kaxeta / No funk linha de frente”. Neguinho do Kaxeta, 34 anos, é uma espécie de versão funkeira de Forrest Gump – o personagem de Tom Hanks que virou uma testemunha ambulante da história dos EUA. Kaxeta viveu a primeira fase do funk consciente de SP, na Baixada Santista, no início dos anos 2000. Fez sucesso na onda seguinte, da ostentação, com versos sobre luxo. E também seguiu na fase anterior, das letras sexuais. Agora, volta ao consciente como referência para os novinhos. “O funk consciente está na raiz da periferia, e acho que as pessoas estavam sentindo falta disso”, opina. “Essa molecada vai ficar, porque tá fazendo um funk que a periferia gosta. Mas eu sempre passo para eles que para ter a moto, tem que trabalhar”, diz o professor consciente. Melodia e superação na quarentena O principal DJ da produtora Love Funk, que está moldando o som da tal nova "molecada" do consciente, é Gabriel Martins Silva. O DJ GM, de 24 anos, cresceu na Zona Oeste de SP, na Favela do Sapé. GM começou a tocar ainda no auge do “funk putaria”, mas ao conhecer Paulin e Lipi na antiga produtora, Gree Cassua, começou a entender e ajudar a criar este som mais passional. DJ GM e MC Lipi no clipe de 'Motoloka' Divulgação A melodia é fundamental. "A gente cria a melodia na hora, e depois cria a letra em cima”, ele explica sobre o processo. “Quando você escuta aquela melodia que toca no coração, o MC até faz a letra melhor do que sem batida”, diz o produtor. Ele acha que a quarentena ajudou a dar ainda mais força ao estilo. “Como não está tendo fluxo (festa de rua), o funk 'putaria' ficou muito em baixa mesmo. As pessoas ficam mais em casa, onde tem pai e mãe”, diz. GM acha que o funk sobre superação é cativante neste momento difícil da pandemia do novo coronavírus: “Muitas pessoas na favela estão se contaminando. Eu tenho muitos amigos que se contaminaram. Está todo mundo desesperado, e essas músicas também pegam o pessoal por isso." Ex-motoboy e o 'despertador da favela' Luiz Felipe Messias Lopes, 19 anos, fez seu primeiro funk há seis anos, quando trabalhava em um ferro velho em Ilhabela, no litoral de SP, ganhando R$ 400 por mês. Fez outros bicos na Vila Ré, Zona Leste de SP, como distribuir panfletos e entregar pizza usando a moto de um amigo. Mas foi cantando sobre o veículo que ele achou uma saída. Ele foi um dos MCs que deu a cara deste funk atual. Entrou para a produtora Gree Cassua, que tem como um dos sócios do veterano DJ Perera, em 2015. Foi lá que conheceu Paulin e outros parceiros, que depois iriam para a Love Funk. “Comecei a querer a falar mais da minha realidade, do que eu vejo, do que os outros passam e eu passava", ele diz. "A gente falava de carro, mas não via nem carro direito. O que eu vejo na minha quebrada é moto passando para lá e para cá”, diz o ex-motoboy. A letra de “Olha esses robôs” ainda tem elementos da onda anterior do funk sexual. Mas foi o verso “o barulho do robozão é o despertador da favela” que fez a música de Lipi com Digo STC virar um hino instantâneo. Orgulho e 'robozão' Quem também ama uma moto, ou “robôzão”, é Paulin da Capital. Ele tem 24 anos e começou na música aos seis, tocando samba, incentivado pelo pai. Descobriu o funk aos 14, mas teve uma vida bem difícil até estourar o que ele chama de “funk de mandrake”. Quando era adolescente, gostava do estilo “proibidão”, que falava da realidade social de maneira ainda mais crua. Seus ídolos eram Felipe Boladão e MC Daleste, ambos assassinados. “O Daleste era da minha quebrada”, diz o MC do Jaú, ao lado do Jardim Três Marias, onde morava o ídolo. “Todo os funkeiros sentiram a morte, ele era bom demais”. A mãe de Paulin era faxineira. “A gente é de classe bem pobre. Não chegava a passar fome, mas necessidade”, ele diz. “Você começa a encostar com os caras que fazem a parada errada, acaba fazendo também. Eu era molecão”. Sua prisão por um assalto em 2014 abalou a família. Ele foi solto após quatro anos e conseguiu mudar de vida, ao entrar na mesma produtora de Lipi e GM. Eles viraram parceiros musicais que o ajudaram a achar outro caminho no funk e mudar seu destino. Com as músicas sobre moto, Deus e superação, Paulin é hoje o funkeiro mais ouvido no YouTube, e o 9º artista entre todos os estilos no Brasil. “Agora posso ajudar a minha mãe. É vitória e orgulho", ele comemora.