Capa do álbum 'Marcos Valle', de Marcos Valle Juarez Machado ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Marcos Valle, Marcos Valle, 1974 ♪ Em 1974, Marcos Kostenbader Valle encerrou ciclo no Brasil ao lançar o sombrio álbum Marcos Valle, último dos dez álbuns editados pelo artista na gravadora Odeon a partir de 1963. Naquele ano de 1974, o tempo estava fechado para esse cantor, compositor e pianista carioca. Dez anos antes, em 1964, apesar das nuvens que já começavam a cobrir o horizonte do Brasil, o tempo ainda estava totalmente claro para Marcos Valle. Com o sol tinindo, Samba de verão (1964) – parceria do artista com o irmão, Paulo Sérgio Valle – refletiu os ares leves soprados pela Bossa Nova, movimento de 1958 do qual Marcos Valle tinha sido herdeiro e expoente da segunda geração, e se tornou clássico instantâneo. Originalmente lançado em disco de 1964, em registro instrumental feito pelo grupo Os Catedráticos (de Eumir Deodato) sem a letra ensolarada de Paulo Sérgio Valle, Samba de verão ganhou a bossa e as vozes do conjunto Os Cariocas ainda naquele ano de 1964, já com os versos que traduziram o espírito sal, céu, sol, Sul da bossa carioca que moveu o samba. No ano seguinte, a composição ganhou a voz do próprio Marcos Valle no segundo álbum do artista, O compositor e o cantor (1965), disco do antológico samba-canção Preciso aprender a ser só (1965) – hit imediato assim que foi lançado – e sucessor do LP inicial Samba “demais” (1963). Um ano depois, em 1966, Samba de verão ganhou o mundo a partir da gravação instrumental feita nos Estados Unidos pelo organista Walter Wanderley (1932 – 1986) e pelo registro subsequente de cantores como Johnny Mathis, então já com a letra em inglês escrita pelo compositor norte-americano Norman Gimbel (1927 – 2018), cuja versão transformou Samba de verão em Summer samba (So nice). Surfando nessa onda planetária, Marcos Valle foi para os EUA, onde lançou dois álbuns, o primeiro gravado em 1967 ainda na cidade do Rio de Janeiro (RJ) para a Warner Music, mas editado no Brasil pela Odeon. Na volta ao Brasil, o cantor expandiu os horizontes musicais ao transitar pelo miscigenado universo pop da época sem deixar de manter o vínculo com a bossa matricial. Aderiu ao engajamento da música de festival no álbum Viola enluarada (1968), expôs a influência juvenil de Luiz Gonzaga (1912 – 1989) ao incorporar ritmos como o baião na explosão pop do álbum Mustang cor de sangue (1969), fez conexão com o grupo Som Imaginário no álbum Marcos Valle (1970), reiterou a adesão ao soul em Garra (1971) – o disco em que gravou Black is beautiful (1971), outro clássico da parceria com o irmão Paulo Sérgio – e seguiu a corrente progressiva do grupo O Terço no álbum Vento sul (1972). Já Previsão do tempo, álbum de 1973, reuniu Marcos Valle com o grupo Azymuth. Neste disco, o cantor já sinalizou as nuvens que encobririam o derradeiro álbum do artista na Odeon, o Marcos Valle de 1974, um dos títulos mais depressivos de discografia do cantor. O álbum foi editado em LP com capa assinada pelo artista Juarez Machado com imagem tradutora do clima desse disco que, pelo tom nublado, se conectou após 46 anos com o mais recente álbum do artista, Cinzento, lançado neste ano de 2020. Nascido em setembro de 1943, Marcos Valle tinha somente 31 anos quando decidiu fazer este disco triste de 1974, gravado sob direção musical creditada na ficha técnica ao maestro Lindolfo Gaya (1921 – 1987), embora a criação dos arranjos tenha sido dividida somente entre Tavito (1948 – 2019) – integrante da formação do grupo Som Imaginário que tocara no álbum lançado por Valle em 1970 – e o próprio Marcos Valle, autor das 11 músicas que compuseram o repertório quase inteiramente inédito do disco, sendo nove assinadas com o irmão Paulo Sérgio. Somente uma música, Tango (1973), já tinha sido previamente gravada – no caso pela cantora Cláudia Regina para a trilha sonora da novela Os ossos do barão (1973 / 1974), composta por Marcos e Paulo Sérgio Valle sob encomenda da TV Globo. Décimo primeiro álbum de Marcos Valle na cronologia da discografia do artista, o álbum de 1974 temperou o toque do pianista com dose farta de melancolia, como exemplificou a gravação de Meu herói, faixa promovida nos programas de rádios e TVs, mas sem ecos nas playlists da época. “Meu herói já chorou / Já morreu de medo / Meu herói é fraco”, contemporizou o cantor nos versos dessa música turbinada com os vocais de cantores como Claudia Telles (1957 – 2020), Marcio Lott, Marisinha, Regininha, Renato Corrêa e Ronaldo Corrêa. Uma das marcas mais fortes do álbum Marcos Valle, a propósito, os arranjos vocais soaram proeminentes nas gravações de músicas como Só se morre uma vez, composição de versos indicativos (“Vou morrer / Vou, mas você vai ter que ouvir / Escutar o que eu canto / Já sem voz”) da atmosfera cinzenta do disco. Mesmo sombrio, o álbum Marcos Valle foi aberto com canção paradoxalmente intitulada No rumo do sol, composição que se impôs em repertório sem melodias aliciantes. Por mais que o groove do músico tenha se mostrado presente no vocalizado tema instrumental Brasil x México (assinado pelo compositor sem parceiro), na arquitetura de Nossa vida começa na gente e no balanço soul de Casamento, filhos e convenções, o álbum Marcos Valle decididamente foi disco de tons menores como os de Remédio pro coração, canção de solidão embebida em álcool e com versos como “Eu não quero as mesas vagas de um bar”. Sem a leveza de verões passados, Marcos Valle pareceu carregar todo peso da vida neste disco de 1974. E foi nessa linha bela e tristonha que se desenrolou Novelo de lã, parceria com Walter Mariani em que o compositor refletiu sobre a passagem inexorável o tempo. E o tempo, cabe enfatizar, estava fechado no Brasil de 1974. Reflexo desse tempo ruim, a letra de Cobaia deixou claro que Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle tomavam partido da liberdade de expressão. “Quem quiser que lave as mãos / Quem quiser virar as costas, vá / Sou ainda um ser humano e vou / Falar o que eu pensar / Pensar o que eu falar…”, ponderou Valle em Cobaia, sinalizando a opressão que asfixiava o Brasil. Talvez pensando sobre o que (não) falar, Marcos Valle encerrou o álbum com tema instrumental, Charlie Bravo, em que disse tudo através do sentimento de tristeza entranhado na derradeira faixa do último álbum da fase áurea da discografia do artista. Para poder respirar ares melhores, Marcos Valle partiu para os Estados Unidos após esse LP de 1974, lançado sem repercussão e logo esquecido, até ser editado em CD em 2011, em caixa produzida por Charles Gavin, mas atualmente já fora de catálogo e das plataformas digitais, embora disponível no YouTube. Quando voltou para o Brasil no alvorecer da década de 1980, o tempo no país já começava a clarear e o cantor e compositor embarcou em outra onda pop, curtindo mais alguns verões sem nostalgia da modernidade dos anos 1960 e 1970. Aclamado em todo o mundo pela bossa planetária, Marcos Valle continua na pista, no rumo do sol, com a pele dourada de surfista carioca, lançando com regularidade álbuns cheios de groove, à espera de tempos menos cinzentos.