Eduardo Albarella tinha 60 anos de carreira na noite paulistana. Miss Biá posa para foto durante lançamento do documentário 'São Paulo em Hi-Fi', em São Paulo Celso Tavares/G1 Eduardo Albarella, mais conhecido como Miss Biá, uma das drags queens pioneiras no Brasil, com 60 anos de carreira, morreu nesta quarta-feira (3) em São Paulo vítima do novo coronavírus. A informação foi confirmada por sua sobrinha. Segundo Adriana do Nascimento, Albarella estava internado há cerca de dez dias por causa da Covid-19 e faleceu nesta manhã, aos 80 anos. A notícia foi recebida com tristeza entre artistas LGBT+. "Temos um ditado entre nós de que 'quando uma de nós morre, nós morremos um pouco'. Com a perda da Miss Biá ouso dizer que só hoje perdemos muito!". disse a drag queen Ikaro Kadoshi ao G1. "Ela era o símbolo da luta, resistência e amor pela arte do transformismo/drag queen. Venceu inúmeras barreiras. Desafiou a ditadura, o tempo, as gerações. Ela era assim, destemida. Uma força da natureza cheia de luz. Um farol em mar revolto. Ficamos, todos nós, sem direção." Em 2018, Biá se apresentou na festa drag Priscilla (veja abaixo), em São Paulo, conhecida pelo público jovem, na mesma noite de uma estrela do reality show norte-americano "Ru Paul's Drag Race". A apresentadora do evento, a também veterana Silvetty Montilla, disse: "As pessoas pensam que a modernidade não pode estar junto com o antigo. Quando se tem talento, tudo vive junto." Relembre apresentação de Miss Biá em São Paulo, em 2018 Biá ainda estava na ativa: era residente de uma boate, em São Paulo, onde apresentava a programação da noite, todos os sábados, às 3h. "Ela nunca faltou", lembra José Roberto Pinheiro, diretor artístico da Danger. "Foi a primeira drag queen que eu vi na vida, na extinta boate Nostro Mundo, fazendo um cover da Hebe, com o sofá onde recebia famosos. E, 25 anos depois, eu comecei a dirigi-la e dava a mão para ela descer as escadas do palco", orgulha-se Pinheiro. Alexia Twister, atriz e drag queen, descreveu a artista como sendo alegre e leve: "Biá era muito feliz, alto astral, sempre sorrindo". "Sempre que eu a via, me sentava do lado e puxava conversa. Biá tinha histórias incríveis. Ela sempre dizia 'antigamente, não era dublagem, não. (Drag queen) tinha que saber cantar e dançar", recorda Alexia. A Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, que organiza o evento, emitiu uma nota de pesar. "Miss Biá, persona de Eduardo Albarella de 80 anos, começou na arte do transformismo no início da década de 60 e não parou mais. Arte, irreverência e bom humor. Estamos em luto. A saudade estará sempre presente", diz o texto. Muitos artistas usaram as redes sociais para fazer homenagens a Miss Biá. Initial plugin text Initial plugin text Initial plugin text Initial plugin text Initial plugin text Initial plugin text Pioneira Miss Biá Miss Biá relembra início do movimento drag no Brasil Leia abaixo o perfil que o G1 publicou em 2017 sobre a drag: Entrar no apartamento de Miss Biá, no Centro de São Paulo, é uma verdadeira viagem ao passado. Os arabescos e bibelôs da decoração remetem ao que ela exalta como “tempos áureos” de glamour da noite paulistana. E não é para menos. Faz 57 anos que Eduardo Albarella – um senhor de 78 anos – sobe nos saltos, coloca peruca, monta os melhores figurinos e capricha na maquiagem para viver a personagem. Veja mais do especial sobre a ascensão das drag queens na cultura pop “Onde eu estiver, a mais velha sempre sou eu. Porque não tem ninguém antes de mim. E ainda na ativa”, diz Albarella, que é um dos primeiros atores transformistas do Brasil. O trabalho desses artistas que usavam maiôs e vestidos em shows de dança, canto e interpretação é precursor no país do que hoje conhecemos como arte drag. Leia mais sobre drag queens pela história Aos 21 anos, Albarella era office boy e morava com sua família no Brás. Foi depois de sair com amigas para assistir a um show em um cabaré na Av. Rio Branco que decidiu se montar pela primeira vez. “Não existia show de transformistas, mas eu fiquei encantado. Aí falei: ‘eu também quero fazer’”. Foram as mesmas amigas que cederam as peças para a transformação inicial. “Elas me emprestaram tudo. Naquela época eu usava jóias que elas tinham, pois elas eram muito bem posicionadas. Hoje em dia é tudo bijuteria, né?” A inspiração para o uso do nome Biá, que já era seu apelido, veio de uma música de Carmen Miranda. Já o visual foi uma homenagem à atriz Gina Lollobrigida, que foi sucesso nos anos cinquenta. “Falavam que eu era parecida com a Lollobrigida. E olha como eu era mesmo”, diz mostrando fotos (veja abaixo). “A gente tinha referências de quem era uma Rita Hayworth, uma Marilyn Monroe e procurava fazer aquilo de uma forma bonita. Ginger Rogers… dançar mais ou menos igual”. Surgia então Miss Biá. A drag queen Miss Biá compara uma foto sua do início da carreira com a foto da atriz Gina Lollobrigida, sua inspiração Celso Tavares/G1 Quando eu cheguei era tudo mato “Quando comecei não existia dublagem. Então tinha que cantar. Tinha shows montados com músicas especialmente para a gente. Depois o investimento financeiro das casas foi escasseando e a gente foi mudando a maneira de se apresentar”, relembra. Biá conta que, no ínicio dos anos 60, não existia boates específicas para o público LGBTQ em São Paulo. “A primeira boate em que fizemos show era hétero. O La Vie En Rose, que ficava aqui na chamada Boca do Lixo (no Centro). E lotava, ia todo mundo. Existia a curiosidade de querer ver uma coisa inédita”. Depois do La Vie En Rose, Miss Biá se apresentou por anos em várias casas como a Medieval e a Corintho. Na Nostromundo ficou conhecida por sua sátira de Hebe Camargo, recebendo nomes como Paulo Autran, Raul Cortez, Regina Duarte, Claudia Raia, Ney Matogrosso e Wanderléia para entrevistas no sofá da boate. Alfinetes da Hebe Não é por acaso que Albarella tinha bagagem para impersonar Hebe. Ele trabalhou por quase trinta anos como maquiador e figurinista da apresentadora, profissões que sempre exerceu em paralelo às apresentações como Miss Biá. “Quando a Hebe foi para a Bandeirantes, eu fiz uma roupa que repercutiu muito. Era Natal, então falei: ‘vou te fazer uma roupa vermelha’. Eu coloquei a perna dela meio de fora… aí o telefone começou a tocar adoidado. ‘Quem fez essa roupa da Hebe?!’” Sem ter feito cursos de costura, Albarella diz que a experiência dos palcos foi o que ajudou a ganhar projeção como figurinista e estilista. “Você tem uma visibilidade muito boa do que é bonito, do que vai ficar bom. Eu me visto e sei numa roupa o que funciona. Isso tudo quem me deu foi o palco”, diz. Ditadura e perseguição Se hoje as drag queens estão por toda parte, fazendo sucesso na TV e se apresentando para o grande público (Leia mais sobre Pabllo Vittar e Gloria Groove), nem sempre foi assim. A comunidade gay foi duramente perseguida na época da ditadura militar no Brasil. “Na ditadura era proibido homem se vestir de mulher. Então eu comecei a trabalhar de menino. Eu pequenininho, com uma blusinha rosa, fazia números com uma mulata que era vedete. Aí depois a censura liberou e eu voltei a trabalhar como mulher e tô até hoje. Mas na época da ditadura foi complicado”, diz. Mesmo após os anos de chumbo, os transformistas não podiam sair na rua com os figurinos com os quais se apresentavam. “Nós não saíamos assim montadas. Tinha que levar a peruca na mão. Se botasse na cabeça eles prendiam porque achavam que era prostituição”, conta Biá. No início dos anos oitenta, durante o governo estadual de Paulo Maluf, rondas de policiamento ostensivo intensificaram-se na área central da capital. Centenas de homossexuais, travestis e prostitutas foram perseguidos e presos nas operações de “limpeza” comandadas pelo delegado José Wilson Richetti. “O Richetti que era o tormento de todo gay. Uma vez ele levou quase seiscentas presas. Aí uma pessoa conhecida foi conversar com ele e ver o que poderia ser feito. Então ele foi com a equipe, assistiu a um show da gente e adorou. Ficou alucinado. Então ele liberou para que eu e as outras que trabalham comigo pudéssemos sair na rua de mulher”, afirma. O novo sempre vem Aos 78 anos, Albarella já se aposentou do trabalho como estilista e maquiador. Mas Miss Biá continua na ativa todos os sábados na boate Danger, onde apresenta os shows da noite. Para ela, o segredo da longevidade está no “glamour”. “Se fosse só bonita, há 30 anos já tinha parado. Duas coisas: se você tem talento e se tem glamour, meu bem, não tem quem derruba. Modéstia à parte, eu digo até com orgulho: eu sou uma velha glamurosa”, diz rindo. Apesar de achar que houve uma banalização do mercado, com pagamento de cachês mais baixos nas boates devido à grande oferta de “gente que se monta”, Miss Biá vê com bons olhos a nova onda de drags cantoras como Pabllo Vittar. “[Elas são] maravilhosas, essas vão para frente. Elas são drag, mas não têm comportamento de quem faz uma coisinha aqui e outra lá. Elas se preocupam com uma produção boa, com bom cachê para se apresentar. Você tem que valorizar o que você faz”, afirma. A drag queen MIss Biá mostra uma foto sua ao lado de Rogéria Celso Tavares/G1