Capa do álbum 'Pelo sabor do gesto', de Zélia Duncan Emmanuelle Bernard ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Pelo sabor do gesto, Zélia Duncan, 2009 ♪ Em 2009, ao lançar o oitavo álbum de estúdio, Pelo sabor do gesto, Zélia Duncan já tinha efetivamente se transformado na cantora e compositora interessante e plural que imaginara ter sido oito anos antes ao extrapolar a fórmula pop folk de discos como Intimidade (1996) para ampliar o universo musical em álbum sintomaticamente intitulado Sortimento (2001). Neste álbum de 2001, impulsionado pelo sucesso da música Alma, improvável parceria de Pepeu Gomes com Arnaldo Antunes, o cancioneiro autoral da artista fluminense pareceu estar próximo de ponto de exaustão. Talvez ciente desse indício de exaustão autoral, Zélia virou o disco no álbum Eu me transformo em outras (2004), registro de estúdio de show de 2003 em que, se exercitando como intérprete de voz grave e timbre similar ao da parceira antecessora Lucina, a cantora abordou luxuoso repertório que priorizou sambas da música brasileira da fase pré-Bossa Nova. Cultuado, o show rodou o Brasil, gerou DVD em 2005 e ajudou Zélia a abrir o leque estilístico com mais propriedade ao retomar a obra autoral no álbum Pré-pós-tudo-bossa-band, também lançado em 2005. Apresentado após quatro anos, com elegante produção musical dividida entre John Ulhoa e Beto Villares, o álbum Pelo sabor do gesto flagrou a cantora e compositora de volta ao pop, mas envolta em inédita aura de delicadeza condizente com a capa criada por Brígida Baltar com foto de Emmanuelle Bernard. Álbum afetuoso, Pelo sabor do gesto foi disco pautado por sensibilidade que seria bisada por Zélia uma década depois no álbum Tudo é um (2019), marco da volta da artista ao pop folk que lhe dera projeção nacional com o coeso álbum de 1994 intitulado Zélia Duncan, mas que já sinalizara certo desgaste no já mencionado disco posterior Intimidade (1996) e em Acesso (1998). Ao longo de 14 faixas, o álbum Pelo sabor do gesto exalou frescor, mas, ao mesmo tempo, reiterou aptidões da discografia da artista, como os apegos aos cancioneiros de Itamar Assumpção (1949 – 2003) e Rita Lee, de quem Zélia virou parceira em 2000. Seguidores atentos da cantora associaram a bem-sacada lembrança do soft rock Ambição (1977) – música de Rita gravada pela autora para a trilha sonora da novela O astro (TV Globo, 1977 / 1978) – ao registro do rock Pirataria (Rita Lee e Lee Marcucci, 1975) feito por Zélia 19 anos antes, quando ela ainda assinada Zélia Cristina, no titubeante primeiro álbum, Outra luz, lançado em 1990. De Itamar, cuja obra vanguardista seria abordada pela cantora no antológico álbum Tudo esclarecido (2012) sem a aura de maldição atribuída ao cancioneiro do compositor paulistano, Zélia apresentou a então inédita Duas namoradas, parceria de Itamar com Alice Ruiz. Sim, Zélia Duncan se enamorou de música e poesia em Pelo sabor do gesto, disco cheio de som e amor. Sugestão do DJ Zé Pedro para o repertório do álbum, assim como a mencionada regravação de Ambição (Rita Lee, 1977), a canção Os dentes brancos do mundo soou como boa nova dos irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle para quem desconhecia as gravações lançadas em 1969 pelas cantoras Claudette Soares e Evinha – e pelo próprio Marcos Valle. Como Zélia revelou nos agradecimentos feitos na contracapa interna da edição em CD do álbum, Zé Pedro também foi o responsável por apresentar o cultuado filme francês Canções de amor (2007) à artista. Escritas pela própria Zélia, duas versões em português de canções compostas em francês por Alex Beaupain para a trilha sonora desse filme valorizaram o disco. Zélia escreveu as letras em português, contatou o autor pela internet e obteve o aval entusiasmado de Alex Beaupain com as consequentes autorizações para as gravações das duas versões. De bonnes raisons virou Boas razões e apareceu na abertura do álbum em gravação feita por Zélia com a participação de Fernanda Takai, parceira do produtor John Ulhoa na música e na vida. Já As-tu déjà aimé? se transformou na música-título Pelo sabor do gesto, exemplo da refinada sensibilidade de repertório embebido em doçura. A meiguice de Tudo sobre você – parceria de Zélia com John Ulhoa – foi acentuada pela perfeição pop de canção acertadamente escolhida para ser o primeiro single do álbum editado pela gravadora Universal Music. A propósito, muito do brilho do disco Pelo sabor do gesto veio das melodias dos parceiros de Zélia, compositora que tende a ser letrista, mas que, no disco, inverteu os papéis habituais com Zeca Baleiro na criação da balada Se um dia me quiseres. Se Marcelo Jeneci exibiu a habitual maestria na criação da melodia de Todos os verbos, Paulinho Moska se afinou com o espírito terno do álbum ao compor Sinto encanto com Zélia Duncan em mais um acerto de parceria que, em 2020, gerou show ainda inédito que será apresentado em turnê pelo Brasil após a reabertura das agendas do universo pop brasileiro. Contemporâneo de Moska, Chico César também se fez presente no álbum Pelo sabor do gesto como parceiro (estreante) e convidado de Zélia em Esporte fino confortável, funk sobre a amizade. No disco, Zélia também abriu parceria com Edu Tedeschi, melodista de Aberto e de Nem tudo. Composição valorizada pelo inventivo arranjo orquestrado por Beto Villares com evocações do universo da música erudita, Se eu fosse – segunda das duas únicas parcerias de Zélia com Dante Ozzetti – exemplificou o alto nível poético das letras do disco Pelo sabor do gesto. Sucesso indie do cancioneiro do cantor e compositor gaúcho Nei Lisboa, Telhados de Paris (1988) manteve esse nível ao mesmo tempo em que reiterou a habilidade de Zélia para pescar pérolas fora do baú da obviedade. Com 30 anos de carreira fonográfica completados em 2020, Zélia Duncan lançou o primeiro álbum no mesmo ano de 1990 em que Adriana Calcanhotto e Cássia Eller (1962 – 2001) debutaram em disco – as três no embalo da abertura do mercado fonográfico para cantoras após a explosão nacional de Marisa Monte em 1989. Nascida em Niterói (RJ) em outubro de 1964, Zélia Cristina Duncan Gonçalves Moreira nunca alcançou o status e o prestígio de Calcanhotto, de Cássia e de Marisa, talvez por se misturar com todos sem pré-conceitos e sem a aura cool alimentada pelas colegas, mas a discografia da artista fluminense também veio se provando relevante ao longo desses 30 anos. Dentro dessa obra, o álbum Pelo sabor do gesto, recebido com elogios mas sem o entusiasmo a que fazia jus ao ser lançado em 2009, ainda soa especialmente sedutor e merece ser descoberto por ostentar o poder do afeto em série de canções delicadas que mantiveram o encanto. Até porque, como sentenciou a própria Zélia Duncan nos últimos versos de Nem tudo, última música do disco, “Nem tudo que acaba aqui / Deixa de ser infinito”.