Auditoria aponta que regra permite venda de medicamentos sem concorrência no Brasil por mais de 20 anos. Ministério da Saúde usa pouco mecanismo que poderia evitar gasto extra. Uma regra exclusiva da legislação brasileira que trata das patentes, somada à demora na atuação do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) e do Ministério da Saúde, estão levando o Brasil a gastar mais com medicamentos, aponta uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU).
O tribunal não chegou a calcular o prejuízo total gerado pela falha nesse sistema. Mas os técnicos do TCU estimaram o impacto em um grupo de 11 medicamentos comprados pelo Ministério da Saúde e concluíram que, entre 2010 e 2019, o governo poderia ter economizado cerca de R$ 1 bilhão com esses remédios.
Segundo o TCU, um dos motivos para essa perda de recursos é uma regra prevista na legislação brasileira e que beneficia os laboratórios quando o Inpi demora demais para analisar os pedidos de patentes.
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De maneira geral, uma patente garante à empresa o direito exclusivo de venda de um medicamento por 20 anos. Esse direito começa a valer a partir do momento em que o laboratório dá entrada no processo no Inpi.
A lei é a mesma em outros países e tem o objetivo de incentivar as pesquisas e o desenvolvimento tecnológico.
Entretanto, a legislação brasileira também garante às empresas o direito de venda exclusiva de medicamentos por um período mínimo de dez anos a partir da concessão da patente pelo Inpi. Esse benefício está previsto no artigo 40 da lei que trata da propriedade industrial.
De acordo com o relatório, as análises de patentes de fármacos são as mais demoradas. O INPI leva, em média, 13 anos para concluir os processos.
Como nesses casos é aplicado o artigo 40 da lei de propriedade industrial, significa que, no Brasil, os laboratórios têm direito à venda de medicamentos de forma exclusiva, ou seja, sem concorrência, por 23 anos, em média.
“(…) A exploração protegida pela patente de produtos farmacêuticos dura em média 23 anos, sendo comum a concessão de patentes que, ao final, terão perseverado por 29 anos ou até mais – e quanto maior o período de exploração exclusiva de medicamentos pelo detentor do direito, mais é onerado o poder público por ser grande comprador para fornecimento dos produtos por meio de suas políticas de saúde”, aponta o processo, cujo relator é o ministro Vital do Rêgo.
O tribunal aponta que o Brasil é o único país que concede prazo adicional de venda sem concorrência em caso de demora na análise dos processos. E recomendou à Casa Civil da Presidência da República que avalie a possibilidade de discutir a revogação dessa regra.
Ao fim do prazo de 20 anos da patente, outros laboratórios podem produzir e vender o medicamento, os chamados genéricos, o que aumenta a concorrência e reduz o preço.
Uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) prevê que o preço de um genérico não pode ser superior a 65% do preço de fábrica do remédio de referência.
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Ministério poderia evitar extensão de prazo
Entretanto, de acordo com o relatório, essa situação poderia ser evitada pelo Ministério da Saúde. Isso porque uma resolução garante ao ministério a prerrogativa de requerer ao Inpi o exame prioritário da patente de medicamentos que fizerem parte de políticas de assistência ou que sejam considerados estratégicos no âmbito do SUS.
Ao usar essa ferramenta, o Ministério da Saúde pode fazer com que um determinado medicamento “fure a fila” da análise de patentes, o que garantiria a conclusão mais rápida desse processo e evitaria a exploração exclusiva pelo laboratório por prazo superior a 20 anos.
De acordo com o relatório, porém, o Ministério da Saúde “tem utilizado tal prerrogativa com pouca frequência”. Foram 16 vezes desde que essa norma passou a valer, em 2008.
Além disso, os auditores do TCU descobriram que o ministério só começou a fazer uso dessa regra a partir de 2016, ou seja, oito anos após ela entrar em vigor. E encontraram pelo menos 32 medicamentos comprados pelo governo entre 2010 e 2019 que não tiveram o pedido de exame prioritário de patente encaminhado pela pasta ao Inpi.
“Verifica-se que os gastos totais desde 2010 informados pelo MS [Ministério da Saúde] com esses produtos alcançam a ordem de R$ 10 bilhões”, diz o relatório do TCU, se referindo aos 32 medicamentos sem pedido de prioridade de análise de patente.
Entre eles, o maior gasto foi com a etanercepte, substância usada no tratamento de doenças como artrite reumatoide, espondilite anquilosante e artrite psoriásica. Segundo o tribunal, entre 2010 e 2019 o governo gastou R$ 2,6 bilhões com a compra deste medicamento.
O TCU aprovou uma recomendação para que o Ministério da Saúde “estabeleça rotinas” para identificar “pedidos de patentes que contenham tecnologias relevantes para o atendimento à população, por meio das políticas públicas de acesso a medicamentos” para permitir os pedidos de priorização de análise ao Inpi.
Já ao Inpi, o tribunal determinou que passe a ser feita a divulgação, no site do instituto, das "filas de pedidos de patentes pendentes."
O G1 procurou o Ministério da Saúde e aguardava resposta até a última atualização desta reportagem.
Reposta do Inpi
O Inpi informou que o atraso na análise de patentes "decorre basicamente do desequilíbrio histórico entre a capacidade de decidir os pedidos de patentes e o volume de pedidos depositados."
De acordo com o instituto, em 2019 havia mais de 200 mil pedidos de patente pendentes de decisão, de todas as áreas. Entretanto, diz o órgão, também no ano passado foi implantado um plano para reduzir essa fila, que já retirou dela 38,6 mil pedidos.
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"O Plano de Combate ao Backlog de Patentes já está cumprindo seu objetivo de reduzir em 80%, até 2021, a quantidade de pedidos com exame requerido e pendentes de decisão, e além disso diminuir o prazo médio de concessão de patentes para cerca de dois anos", informou o Inpi em nota.
Segundo o instituto, o número de examinadores também vem aumentando desde 2015 e hoje são 44 dedicados exclusivamente à análise de pedidos de patentes de fármacos químicos ou biológicos, em primeira instância.
O Inpi informou que atualmente a maioria das análises de patentes supera os 10 anos e, portanto, é beneficiada pelo artigo da Lei de Propriedade Industrial que permite prazo de venda exclusiva por mais de 20 anos. Em 2017, essa regra foi aplicada em 90,5% dos casos, disse o instituto.
Entretanto, o Inpi defende que a "eliminação de pronto" da regra "não é a melhor solução para o problema."
"É necessário avaliar o impacto de uma declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 40, com a consequência da perda desse direito por depositantes que já estão com pedidos depositados, o que poderia causar uma corrida aos tribunais e ampliar a insegurança jurídica da propriedade intelectual no País, particularmente no campo farmacêutico. Além disso, o Sistema de Propriedade Industrial do Brasil poderia ter sua imagem internacional abalada, com consequências para a recuperação da confiança do investidor", diz o Inpi.