Capa do álbum 'Tardes cariocas', de Joyce Moreno Locca Faria ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Tardes cariocas, Joyce Moreno, 1983 ♪ Em 1980, a voz de Joyce Moreno foi descoberta tardiamente pelo Brasil quando a cantora, compositora e violonista carioca defendeu Clareana – melodiosa canção que fizera em parceria com Maurício Maestro para saudar as filhas Clara, Ana “e quem mais chegar” – no festival MPB-80, exibido pela TV Globo naquele ano. Em 1983, após dois discos bem-sucedidos, Feminina (1980) e Água e luz (1981), a artista teve que bancar produção independente para gravar e editar o sexto álbum solo, Tardes cariocas, formatado pela cantora com o baterista Tutty Moreno, parceiro de Joyce na vida e na música. A reviravolta mercadológica tinha sido efeito da bravura dessa artista que, em 1967, já atiçara a moral vigente ao apresentar em festival o samba-canção Me disseram, de versos (“Já me disseram / Que meu homem não me ama / Me contaram que tem fama / De fazer mulher chorar”) pioneiros no então predominantemente masculino e machista cancioneiro brasileiro. É que Joyce irritara a diretoria da gravadora EMI-Odeon ao reclamar os devidos direitos pelo uso das bases da gravação de Clareana em álbum da cantora Sonia Mello, Grandes mulheres, grandes sucessos, produzido e lançado em 1980 na carona do boom feminino que revolucionara a MPB em 1979. Para evitar pendenga judicial, a companhia retirou de circulação o LP de Sonia Mello, mas, em contrapartida, fez com que, em nome do corporativismo fonográfico, as portas da indústria do disco fossem fechadas para Joyce na época. Foi nesse contexto que, de forma independente, a artista produziu e gravou o álbum Tardes cariocas, contando com a little help de grandes amigos músicos como Egberto Gismonti. O artista fluminense marcou quádrupla presença ao longo das 10 músicas do disco Tardes cariocas, tendo as participações devidamente destacadas nos créditos das faixas Baracumbara, Ela, Luz do chão e Nuvem. Em Baracumbara, tema sem letra que caía na suingueira com os vocalizes de Joyce, Gismonti tocou sanfona e viola de 12 cordas, dando ar bucólico ruralista a esse baião em que, mesmo dentro da nação nordestina, a autora pareceu evocar o universo jobiniano, referência na construção da obra de Joyce. Na confecção de Ela, suave canção confessional de Joyce em parceria com Mario Adnet, Gismonti pilotou o então moderno sintetizador obx-a com respeito ao tempo de delicadeza da música. “Minha música me satisfaz / Toda poderosa e cheia de luz / E é tão bom ver / Que ela me ilumina e faz / Minha vida valer”, celebrou a cantora e compositora, saudando o poder da criação musical. Basta ouvir Nuvem – linda canção em que Joyce, com os precisos toques do piano e do obx-a de Gismonti, manifestou preocupação ambiental com os rumos do planeta Terra – para atestar que, sim, a compositora estava cheia de luz na criação da poderosa safra do álbum autoral Tardes cariocas. A natureza (inclusive a do bicho homem) também foi musa inspiradora dos versos do samba Luz do chão – tema sobre o fogo ganancioso que seca águas e faz arder matas em solo brasileiro irrigado pela arte, facho de luz nesse eterno país do futuro – e da canção de louvor ao trabalho Suor, parceria de Joyce com Alberto Rozenblit, pianista arregimentado como arranjador do álbum ao lado de Mario Adnet. Luz do chão, cabe ressaltar, era mais um título da afinada parceria de Joyce com a compositora Ana Terra, letrista antenada de Essa mulher e Da cor brasileira, músicas que projetaram o cancioneiro autoral de Joyce ao longo de 1979 nas vozes das cantoras Elis Regina (1945 – 1982) e Maria Bethânia, respectivamente. Naquele ano consagrador, Joyce também foi gravada por Ney Matogrosso, cantor que deu voz à composição Ardente no álbum Seu tipo (1979). O que deu simbolismo adicional à presença de Ney no álbum Tardes cariocas como convidado de Joyce na interpretação de National Kid, samba de sincopado frenético. Ao samba, seguiu-se, na ordem do disco, a canção Duas ou três coisas, cuja letra existencialista trazia sopro de liberdade que também bafejou a música-título Tardes cariocas, composição em que, cheia de bossa, Joyce perfilou o verão da cidade natal com a naturalidade de ser do Rio de Janeiro (RJ), onde nascera em janeiro de 1948, e discípula de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), o carioca soberano. A leveza de Tardes cariocas, a música, foi acentuada pelo toque abastado do violão de Joyce e pelo sopro de flautas, instrumento que, no arranjo de Curioso (Joyce Moreno e Marku Ribas), remeteu ao universo musical de Dori Caymmi, arquiteto de brasilidade sonora entranhada na faixa. Lançado com capa que expôs a artista em foto (de Locca Faria) na qual se via o Cristo Redentor e dedicado por Joyce Moreno ao Rio de Janeiro e “ao que resta de Brasil”, o álbum Tardes cariocas foi aberto, na edição original de 1983, pela marchinha Diga aí, companheiro, tema em que a compositora seguiu o bloco da irreverência ao abordar com graça o tema da bissexualidade de homens casados e pais de família. Com a cara alegre das Frenéticas, para quem a música foi feita sem ter sido (inexplicavelmente) gravada pelo grupo, a marchinha foi retirada das edições posteriores do disco Tardes cariocas por iniciativa de Joyce, tendo entrado somente como faixa-bônus na edição produzida por Marcelo Fróes e Maurício Gouvêa para caixa lançada em 2016 com reedições em CD de quatro álbuns lançados pela cantora nos anos 1980. Com razão, a artista percebeu que Diga aí, companheiro destoava do conceito de Tardes cariocas, álbum de climas geralmente solares com algumas nuvens de melancolia no repertório inspirado. Encoberto pela má distribuição, problema recorrente nas produções independentes da época, o álbum Tardes cariocas passou despercebido na época. Em 1985, ano em que o Japão descobriu a bossa singular de Joyce Moreno, a artista lançou o álbum Saudade do futuro, produzido com Gilson Peranzzetta e editado pelo selo indie carioca Pointer. Seguiram-se songbooks em tributos a Tom Jobim e a Vinicius de Moraes (1913 – 1980) até que um disco ao vivo, editado em 1989 pela mesma gravadora EMI que fechara portas para Joyce por conta da questão jurídica, encerrou a discografia da artista naquela década de 1980. Desde então, Joyce passaria a gravar discos primordialmente para o Japão e para a Europa, onde estourou nas pistas inglesas nos anos 1990. E o Brasil, sempre atrasado, ainda precisa dar – mesmo tardiamente – o devido valor a Joyce Moreno, artista cuja obra iluminada ainda resplandece em discos empoderados como Tardes cariocas.