Capa do álbum 'Balé mulato', de Daniela Mercury Mario Cravo Neto ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Balé mulato, Daniela Mercury, 2005 ♪ O canto da cidade de Salvador (BA) já não era somente de Daniela Mercury quando, em outubro de 2005, a artista lançou o álbum Balé mulato, um dos mais luminosos títulos de discografia que atingira picos astronômicos de vendas na década de 1990 com álbuns como O canto da cidade (1992) e Feijão com arroz (1996). Trilha hegemônica de outros Carnavais, a axé music na época já descia ladeira e dividia a preferência popular com o pagode de grupos como Harmonia do Samba. Cantora soteropolitana, Daniela tinha detectado esse movimento descendente do gênero que lhe deu fama e, por isso, vinha experimentando outros sons e ritmos desde o início dos anos 2000. Enquanto estava na gravadora BMG, a artista acertou ao dar tom globalizado a registro de show gravado em 2003 na série MTV ao vivo. Embora tivesse apostado no projeto, a gravadora pareceu ter desacreditado do disco quando o CD e o DVD foram efetivamente lançados sem a repercussão a que faziam jus pela excelência da gravação ao vivo. A BMG tampouco investiu no posterior Carnaval eletrônico, disco inovador de 2004 em que Daniela pôs a axé music na pista, associando o batuque afro-baiano ao groove sintético de DJs como Memê e Zé Pedro. Embora tratado com descaso pela gravadora, o que motivou a saída de Daniela da BMG, o álbum Carnaval eletrônico rendeu espontaneamente o hit folião Maimbê Dandá (Carlinhos Brown e Mateus Aleluia, 2004), desde então número infalível nos shows da cantora. Fora da BMG, a cantora fez registro de show em que se aventurou como intérprete de sucessos da MPB, mas Clássica (2005) – álbum editado pela gravadora Som Livre em CD e DVD no mesmo ano de Balé mulato – reiterou que, não, Daniela Mercury não era cantora de qualquer lugar, como sentenciara no título de esmaecido álbum de 2001. Tanto que, ao voltar em Balé mulato para a carnavalizante e tropicalista miscigenação pop de Salvador (BA), a cantora recuperou o vigor discográfico ao apresentar grande álbum em que alternou faixas festivas e canções românticas com coesão nem sempre presente na irregular obra fonográfica da cantora. A miscigenação tropicalista de Balé mulato já ficou exposta na capa que estampou foto feita por Mario Cravo Neto (1947 – 2009) na quadra da escola de samba fluminense Beija-flor de Nilópolis. Oitavo álbum solo de estúdio de Daniela Mercury, Balé mulato marcou a estreia da artista na gravadora EMI. Ficou claro o alto investimento da companhia fonográfica na luxuosa edição de Balé mulato enviada para os formadores de opinião com capa alternativa, encoberta por luva com a grife de Gringo Cardia, autor do projeto gráfico do disco. Com produção musical orquestrada pelo percussionista Ramiro Musotto (1963 – 2009) e por Alê Siqueira, sob a direção artística de Daniela, o álbum Balé mulato teve sintetizado o antropofágico espírito carnavalesco nas cintilantes faixas Levada brasileira e Balé popular, duas músicas do (geralmente certeiro) compositor baiano Pierre Onassis com Edilson, ambas gravadas com o toque definidor do berimbau percutido por Musotto. Música candidata a hino informal da Copa do Mundo de 2006, Levada brasileira celebrou a mestiçagem do suingue nacional, caindo inclusive na cadência bonita do samba. Na mesma linha, Balé popular puxou a rede para as águas da África matricial, fonte que abasteceu a música da Bahia, também banhada pelos mares caribenhos. Dentro da coreografia multicolorida do álbum Balé mulato, a abordagem de Aquarela do Brasil (Ary Barroso, 1939) fez sentido no contexto do disco. Daniela pôs o samba-exaltação na roda baiana com a mesma propriedade com que reviveu Meu pai Oxalá (1973), samba onde o carioca Vinicius de Moraes (1913 – 1980) e o paulistano Toquinho foram mais baianos ao pisar nos terreiros da sincrética cidade de Salvador (BA). Nessa aquarela rítmica, o samba-reggae foi a base do baticum de Eu queria (Pierre Onassis, Edilson e Xel Guima). “O samba é meu chão”, assentou a cantora no verso inicial de Quero ver o mundo sambar (Daniela Mercury), uma das três músicas autorais apresentadas ao longo das 14 faixas do álbum. A artista também assinou o bom frevo Água do céu (em parceria com Jorge Zarath) e a modernosa canção Sem querer, única faixa com reduzido poder de sedução em disco harmônico. A propósito, a coesão do álbum Balé mulato também se deveu à acurada seleção de repertório em que Daniela, compositora bastante oscilante, deu vez e voz a autores mais vocacionados para a função. A escolha de canções distantes do universo carnavalesco se mostrou especialmente feliz. Conectando Balé mulato ao também aclamado álbum Feijão com arroz (1996), disco também pautado pela miscigenação pop popular, Daniela apresentou canções envolventes que por vezes evoluíram no balanço do reggae sem perda do sotaque universal. Canções como Toneladas de amor (gravada com a voz e a guitarra do autor, Márcio Mello), a apaixonada Topo do mundo (Jauperi e Gigi) – faixa eleita o primeiro single do álbum – e a libertária Amor de ninguém (O amor) (Jorge Papapa) contribuíram para que Balé mulato jamais perdesse a cor e mantivesse uma urbanidade contemporânea amplificada em Nem tudo funciona de verdade (Tenilson Del Rey e Anderson Guimarães). Nessa seara de canções, merece menção honrosa a interpretação interiorizada de Pensar em você (1999), balada então esquecida de Chico César, gravada pelo compositor no álbum Mama múndi, lançado no mesmo ano de 1999 em que Rita Benneditto também registrou a canção no álbum Pérolas aos povos. Conduzida pelo toque minimalista do piano de Marcelo Galter, harmonizado com cordas arranjadas por Lincoln Olivetti (1954 – 2015), a delicada gravação de Pensar em você por Daniela resultou lapidar, permanecendo como um dos mais belos momentos da obra fonográfica da artista. Em que pesem as sedutoras canções do amor demais nem sempre correspondido, Balé mulato foi disco essencialmente voltado para a festa e para a alegria popular. Tanto que incorporou ao repertório o hit de Daniela no Carnaval de 2005, Olha o Gandhy aí (Totonho Matéria e Jô Vieira), música apresentada em janeiro de 2005, três meses da gravação do disco formatado em estúdios de Salvador (BA) de abril a julho daquele ano de 2005. Balé mulato resultou tão revigorante na trajetória da cantora que, quatro anos depois, Daniela repetiu a receita tropicalista no álbum Canibália (2009), mas, como a artista pôs dose maior de músicas autorais na mistura de 2009, o disco posterior soou menos coeso. A rigor, Balé mulato permaneceu ao longo dos últimos 15 anos como o último grande álbum de Daniela Mercury. Um disco condizente com a importância histórica dessa artista que, mesmo não tendo sido tão pioneira como imagina ser, contribuiu decisivamente para a expansão massiva da axé music por todo o Brasil na década de 1990.