Autor de ficção científica fala ao G1 sobre "Recursão", que será adaptado para cinema e TV pelas mãos de Shonda Rhimes ("How to get away with murder"). O escritor Blake Crouch está acostumado a imaginar mundos em que as regras de sempre não valem mais, onde há possibilidades fantásticas e também cenários apocalípticos. Isso não o preparou, no entanto, para o choque provocado pelo aparecimento do novo coronavírus. "Mais do que qualquer coisa, eu me sinto abalado ao viver dentro desta crise, ao viver essa montanha-russa emocional", diz Crouch em entrevista ao G1. "Acho que não saber como se ajustar ao cenário que se formou [com a pandemia] é, até agora, o mais difícil. Escrevi sobre vários personagens que vivem tempos extraordinários. Tem um pouco de fascinante vivenciar emoções que poderiam ser de um deles." As impressões sobre a atual crise mundial guardam semelhança com o que experimentam os personagens de suas duas últimas obras, "Matéria escura" e "Recursão". Os protagonistas dos dois livros têm em comum o fato de serem arremessados para versões diferentes de suas próprias vidas. Os dois títulos foram sucessos que aumentaram o cacife de Crouch como um dos nomes de destaque da ficção científica atual, ao abordar ciência em ritmo de thriller. "Matéria escura" bebe nas possibilidades da física quântica e "Recursão" imagina a memória como um caminho para voltar no tempo e refazer, literalmente, a vida. O escritor de ficção científica Blake Crouch Divulgação/Jesse Giddings Além de lidar com problemas científicos complexos, seus personagens atravessam narrativas em que revisitam traumas pessoais e encaram recomeços. "Acho que esse aspecto é tão importante, se não mais, do que a parte de tentar incursões na ciência de forma séria." Crouch também costuma construir "cliffhangers" (expectativa para o que vai acontecer depois na narrativa), que chamaram a atenção de Shonda Rhimes ("How to get away with murder") e de Matt Reeves (o diretor do próximo Batman). Os dois vão trabalhar na versão para as telas de "Recursão". Fascínio e terror O escritor norte-americano, de 41 anos, vê com um misto de fascínio e terror as descobertas científicas anunciadas e o avanço rápido da tecnologia nos dias de hoje. "Com a divisão do átomo e a ameaça existencial com o desenvolvimento de superinteligências, a humanidade atingiu um ponto de sua evolução em que consegue criar tecnologias com o potencial de nos guiar a uma nova fase do nosso progresso ou nos aniquilar totalmente. Descobrir qual caminho vamos escolher, e por que, é na minha opinião a questão mais urgente do nosso tempo." Permaneço otimista. A luta no mundo não será sobre o bem contra o mal, e sim sobre mente aberta versus medo" Um dos personagens principais de "Recursão" é um empreendedor ambicioso que quer desenvolver uma máquina para localizar memórias. Crouch nega que o CEO da Tesla, Elon Musk, tenha sido a inspiração. "Não ele em particular, mas sim magnatas da tecnologia em geral", diz o escritor, sem convencer muito. "Há algo temeroso em bilionários com QIs robustos brincando com tecnologias poderosas e inimagináveis só porque têm dinheiro e meios para isso. Nesse ponto da nossa evolução, a humanidade parece ter uma crise de identidade, que tem uma questão central." Nós somos criações ou criadores? Ou ambos? Não é dizer que Elon Musk não possa ser a força motriz por trás de um grande avanço para a humanidade, algo que nos leve à próxima fase de nossa existência – seja lá o que isso for. Mas essa força-motriz precisa de ter altas doses de humildade, cautela e sabedoria" Os problemas de voltar no tempo "Recursão" imagina o dilema ético de voltar no tempo (por exemplo, uma semana ou horas atrás), ter o poder de evitar tragédias, mas provocar uma espécie de "efeito borboleta" que desarranja todo o resto. "O mais importante a considerar nessa questão", diz Crouch, ao se colocar no problema dos seus protagonistas, "é o impacto de consequências não desejadas". "Por mais que gostaríamos de mudar elementos horríveis do nosso passado para tornar o nosso presente um lugar melhor, a lógica da realidade não funciona assim. Se você puxa um fio, mesmo com a melhor das intenções, é impossível assegurar que você não estará levando essa linha temporal para um cenário bem mais terrível depois." O projeto desenvolvido por Rhimes e Reeves para a Netflix se estrutura primeiro com um filme que depois se desdobra em uma série. O desdobramento dela será justamente feito das múltiplas linhas do tempo a partir do que acontece no filme. Crouch, no espírito de sua ética da volta no tempo, diz que prefere não interferir no projeto. "Vou deixar Shonda e Matt decidirem o caminho da adaptação. Está em boas mãos."