Morte do compositor, aos 98 anos, põe em foco cancioneiro irreverente que, na memória popular, se resume a 'Cada macaco no seu galho' e 'Vá morar com o diabo'. ♪ OBITUÁRIO – É difícil dimensionar, em quantidade, a obra autoral do cantor e compositor baiano Clementino Rodrigues (14 de novembro de 1921 – 30 de março de 2020), o sambista conhecido como Riachão, apelido lhe atribuído na infância que virou nome artístico. “Conhecido”, no caso, é força de expressão, pois, a rigor, o nome de Riachão quase nunca extrapolou as fronteiras da cidade natal de Salvador (BA), embora o artista seja aclamado pela crítica de todo o Brasil. Foi na cidade de Salvador (BA) que Riachão saiu de cena na madrugada desta segunda-feira, 30 de março, aos 98 anos. De acordo com familiares, morreu dormindo, sem poder festejar o centenário vislumbrado no título, Se Deus quiser vou chegar aos 100, do álbum que planejava gravar neste ano de 2020 com repertório inédito e autoral. Estimada em mais de 500 composições, a maioria nunca registrada em disco, a própria obra do compositor parece resumida, na memória popular, aos sambas Cada macaco no seu galho (1972) – lançado nas vozes de Caetano Veloso e Gilberto Gil em gravação feita há 48 anos na volta dos cantores ao Brasil após exílio na Europa – e Vá morar com o diabo (2000), este propagado na voz da cantora Cássia Eller (1962 – 2001) em gravação feita um ano após o registro do autor em dueto com Caetano. Cronista irreverente do samba da Bahia, Riachão personificou a alegria da cidade de Salvador (BA), evocando uma malandragem do bem na obra construída com assinatura pessoal e com inspiração na efervescência rítmica do samba de roda, do partido alto e da chula. Consta que compôs a primeira música na adolescência, por volta dos 15 anos, e não mais parou. Riachão em ilustração de Mike San Chagas, feita para livro infantil escrito pela cantora Vânia Abreu, fã de Riachão Divulgação Iniciada na era do rádio em Salvador (BA), nas décadas de 1940 e 1950, a carreira de Riachão demorou a decolar. Mesmo tendo músicas gravadas por cantores associados ao forró, sobretudo Jackson do Pandeiro (1919 – 1982), Riachão somente obteve a chance de registrar a própria obra em disco em 1973, no embalo da repercussão do samba Cada macaco no seu galho nas vozes de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Mesmo assim, Riachão teve que dividir o álbum Samba da Bahia (1973) com os conterrâneos contemporâneos Batatinha (1924 – 1997) e Panela (1937 – 1999). Na (generosa) parte que lhe coube neste disco coletivo, Riachão registrou músicas como Vou chegando, Fufú e Pitada de tabaco. O primeiro álbum solo, Sonho de malandro, veio ao mundo oito anos mais tarde, em 1981, por via independente, com músicas como Eu também quero e Quando o galo cantou. Neste disco, os títulos das composições Baleia da Sé e Lavagem do Bonfim já sinalizaram que a inspiração de Riachão vinha sobretudo da Bahia Natal, musa inspiradora de crônicas musicais como Incêndio no Mercado Modelo, composição da década de 1950. Os álbuns Humanenochum (2000) – repleto de convidados como Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Ivone Lara (1922 – 2018) e Tom Zé – e Mundão de ouro (2013) deram continuidade à discografia espaçada de Riachão. Figura extrovertida, Riachão irradiou alegria somente estancada em 2008, ano em que acidente de carro matou a mulher e dois filhos do artista. Aos poucos, o sambista recuperou a alegria de viver. Deus não quis que ele chegasse aos 100 anos, como pediu no título do disco que não teve tempo de gravar, mas Riachão se vai aos 98 anos já tendo garantida a imortalidade artística e deixando no mundo um cancioneiro vivaz que, por ter sido pouco registrado, merece documentação urgente antes que se perca na tradição oral e no tempo.