Obra musical do artista traduz a ebulição que pautou a vida do parceiro de Frejat e Nico Rezende. ♪ OBITUÁRIO – “Uma louca paixão avassala a alma o mais que pode / O certo é incerto / O incerto é uma linha reta / De vez em quando, acerto / Depois tropeço no meio da linha”. Os versos de Jorge Salomão impressos na melodia de Pseudo-blues – composta por Nico Rezende e gravada por Marina Lima no álbum Virgem (1987) – traduzem o espírito inquieto, apaixonado, por vezes louco e incerto, que moveu o poeta e letrista de música Jorge Dias Salomão (3 de novembro de 1946 – 7 de março de 2020) em 73 anos, três meses e quatro dias de vida. A vida de Jorge Salomão se encerrou na manhã de sábado, 7, com a morte do artista em hospital do Rio de Janeiro (RJ), cidade para onde este baiano natural de Jequié (BA) migrou em 1969, em tempo de mergulhar na atmosfera efervescente da contracultura carioca pós-tropicalista. Jorge driblou o fato de ter sido irmão de um gigante da escrita, o também poeta e letrista Waly Salomão (1943 – 2003), e traçou a própria linha (in)certa. Não tivessem o mesmo sangue, Jorge e Waly teriam se irmanado por terem pavimentado os respectivos caminhos literários com a mesma paixão efervescente. Waly se tornou parceiro de Caetano Veloso e, por extensão, foi parar na voz de Maria Bethânia, intérprete deste poeta em ebulição que dirigiu shows antológicos de Gal Costa. Jorge encontrou a própria turma e somente fez parceria com Waly na escrita de Natureza humana (1986), versão em português de Human nature (John Bettis e Steven Porcaro, 1982) gravada por Dulce Quental no primeiro álbum solo da cantora, Délica (1986). Parceiro de Alvin L, de Hyldon, de Zé Ricardo e sobretudo de Nico Rezende e Roberto Frejat, Jorge Salomão somente uma vez foi agraciado com a sorte (comercial) de ter uma música nas paradas de sucesso. Noite, parceria com Nico, foi hit radiofônico em 1987 na voz de Zizi Possi, cantora então às voltas com repertório de maior apelo pop(ular). Quando Zizi dava a voz cristalina a versos como “Fogo aceso, Corpo paixão / Sou toda explosão”, quem conhecia Jorge sabia que o poeta falava de si mesmo na inquietude dessas palavras. Jorge Salomão deixa músicas como 'Noite', 'Pseudo-blues' e 'Fúria e folia' Elena Moccagatta / Reprodução Facebook Jorge Salomão Sim, Jorge Salomão ardeu na fogueira das paixões que acendia cotidianamente para manter alta a chama da vida. Por isso, fez parcerias com cantores que gostam dos que ardem, caso de Adriana Calcanhotto, fina estilista pós-tropicalista que musicou os versos de Sudoeste, música do álbum significativamente intitulado A fábrica do poema (1994). “Tenho por princípios / Nunca fechar portas / Mas como mantê-las abertas / O tempo todo / Se em certos dias / O vento quer derrubar tudo?”, ponderou Calcanhotto na letra da música. Em (in)certos dias, o poeta letrista pareceu ser o próprio sudoeste que derrubou tudo. “Eu sou a voz da voz do outro / Que há dentro de mim / Guardada falante querendo arrasar / O teu castelo de areia / Que é só soprar, soprar / Soprar, soprar e ver tudo voar”, admitiu o poeta nos versos confessionais de Política voz, parceria com Frejat gravada há 30 anos pelo Barão Vermelho em um dos álbuns mais incisivos da banda, Na calada da noite (1990). “Sou solidão a dançar com a língua no formigueiro”, completou Jorge em outra parceria com Frejat, Fúria e folia, do álbum Supermercados da vida (1992). Cada palavra de cada letra de música pareceu traduzir as (in)certezas de Jorge Salomão, o letrista todo explosão que derrubou portas, tropeçou no meio da linha, pôs a língua no formigueiro, arrasou castelos de areias e fez tudo voar nas asas da poesia, vivendo com uma louca paixão para encantar palavras musicadas.