Este é Ben Affleck, aberto e vulnerável, falando pela
primeira vez sobre como conseguiu ficar sóbrio (novamente) e suas tentativas de
recalibrar a carreira (novamente). Roteirista e diretor oscarizado, melhor ator
do que você lembra e, sim, alcoólatra e divorciado, Affleck tem quatro filmes
para lançar em 2020. Seu primeiro longa completo em quatro anos chega aos
cinemas em 5 de março. No drama “The way back”, Affleck interpreta um relutante
treinador de basquete do ensino médio com graves problemas pessoais. Teimoso e
alcoólatra, ele acaba com seu casamento e vai parar numa reabilitação. É isso
mesmo que você leu.
— Pessoas com comportamento compulsivo, e eu sou assim, sentem um desconforto
básico que estão sempre tentando expulsar — diz o ator, durante uma entrevista
de duas horas a beira de uma praia, em Los Angeles. — Você tenta se sentir
melhor comendo, bebendo, fazendo sexo, apostando, fazendo compras ou o que for.
Mas isso acaba piorando sua vida. Aí, vai mais fundo nas obsessões para que esse
desconforto vá embora. Então, a dor começa de verdade. Vira um ciclo vicioso.
Pelo menos comigo foi assim.
Ele limpa a garganta.
— Eu bebi, relativamente, de maneira normal por muito tempo. Mas comecei a
beber mais e mais quando meu casamento estava desmoronando. Isso foi entre 2015
e 2016. A bebida, é claro, criou mais problemas no meu relacionamento.
Divórcio
O casamento com Jennifer Garner, com quem tem três filhos, terminou
oficialmente em 2018 após uma longa separação. Ele diz que ainda sente culpa,
mas que a vergonha passou.
— O maior arrependimento da minha vida é esse divórcio — admite. — A vergonha
é realmente tóxica. Não há um subproduto positivo da vergonha. É apenas uma
sensação tóxica e hedionda de baixa autoestima e auto-aversão.
Ele respira fundo e expira lentamente, como se quisesse desacelerar.
— Não é saudável se obcecar com os erros, as recaídas. Certamente cometi
erros. Certamente fiz coisas das quais me arrependo. Mas você precisa se
recompor, aprender com isso e tentar seguir em frente.
Fracassos
“The Way Back” originalmente se chamava “The has-been” (“Ultrapassado”, em
português). Esse título foi abandonado a medida que a produção se tornou menos
focada no talento para o basquete que o protagonista tinha no ensino médio, diz
Affleck. Basta dizer que nenhum ator quer aparecer num pôster ao lado da palavra
“Ultrapassado”, especialmente depois de duas decepções nas bilheterias. “Liga da
justiça” (2017) arrecadou US$ 658 milhões, uma quantia insignificante para os
padrões de filmes de super-heróis, e “A lei da noite” (2016), um drama de
gângster dirigido por Affleck, fez US$ 23 milhões.
Affleck, 47 anos, tem trabalhado como um louco para
recolocar sua carreira nos trilhos. A dura verdade é que o resultado não é
garantido. Os espectadores de cinema, em particular as mulheres, decidirão: o
perdão ainda é algo aceitável numa sociedade marcada pela polarização virtual?
Para alguns, Affleck ainda é o cara que partiu o coração de Garner e foi acusado
de apalpar uma apresentadora de TV, em 2013. “Eu agi de maneira inadequada”, ele
disse sobre o incidente em 2017, quando a era #MeToo surgia, “e peço desculpas
sinceramente.”
Retorno
Hollywood certamente concedeu clemência a Affleck. Ele acabou de atuar em
“Deep Water”, um thriller psicológico co-estrelado por Ana de Armas, que será
lançado nos cinemas em novembro. Está na Netflix com “A última coisa que ele
queria”, um suspense com Anne Hathaway, e também trabalha com Nicole Holofcener,
indicada ao Oscar (“Poderia me perdoar?”), e Matt Damon no roteiro de “The Last
Duel”, que começa a ser filmado este mês na França. O filme se passa no século
XIV e traz Affleck e Damon juntos como roteiristas pela primeira vez desde
“Gênio indomável”, de 1997. Ridley Scott vai dirigir o longa-metragem, que já
chega como um concorrente ao Oscar.
Affleck tem outro projeto pessoal como diretor: “O fantasma do rei Leopoldo”,
um épico sobre a exploração do que hoje é a República Democrática do Congo;
Martin Scorsese assinou contrato como produtor.
Família difícil
Ele não fala muito sobre seu alcoolismo desde que completou um terceiro
período de reabilitação em 2018 — os dois primeiros foram em 2001 e 2017. Mas a
chegada de “The way back” tornou o assunto inevitável. — A recaída é
constrangedora, obviamente — admite. — Preferia que não acontecesse. Realmente
gostaria que não estivesse na internet para meus filhos verem. Jen e eu fizemos
o nosso melhor para resolver o problema de maneira honesta.
Enquanto crescia em Massachusetts, Affleck via seu
próprio pai bêbado quase todos os dias, segundo ele.
— Meu pai não ficou sóbrio até os meus 19 anos .
Foi uma das duas vezes em que ele escolheu cada palavra com cuidado, sendo a
outra a resposta para uma pergunta sobre o julgamento de Harvey Weinstein,
acusado de estupro e agressão sexual. No início de sua carreira, Affleck
estrelou vários filmes produzidos por Weinstein:
— Não sei se tenho algo a acrescentar ou dizer que ainda
não tenha sido dito melhor por pessoas que foram vitimizadas por ele — diz.
Três anos atrás, ele anunciou que doaria todos os futuros pagamentos
residuais dos filmes de Weinstein para instituições de caridade contra agressão
sexual.
— Quanto mais velho fico, mais reconheço que meu pai fez
o melhor que pôde. Há muito alcoolismo e doenças mentais na minha família. O
legado disso é bastante forte e difícil de enfrentar.
O irmão mais novo de Affleck, Casey, 44 anos, falou sobre seu próprio
problema de alcoolismo e sobriedade. A avó paterna se matou em um motel aos 46
anos, um tio tirou a própria vida com uma espingarda e uma tia era viciada em
heroína.
— Demorei muito tempo para, fundamentalmente, sem um pingo de dúvida, admitir
para mim mesmo que sou alcoólatra.
Alcoolismo em Hollywood
Parece um bom momento para apontar quantas estrelas começaram a falar sobre
sobriedade —principalmente Brad Pitt — , e como isso estava diminuindo o estigma
do vício e, talvez, inspirando pessoas com esses problemas a procurar ajuda.
Jamie Lee Curtis, sóbria há duas décadas, apareceu na capa da edição de
“recuperação” da Variety em novembro. Discutindo o temaem livros e entrevistas
recentes já apareceram Demi Lovato, Anthony Hopkins, Jessica Simpson, Demi Moore
e, é claro, Elton John, padrinho de Eminem.
Affleck citou Bradley Cooper e Robert Downey Jr. como “caras que têm sido
muito solidários e a quem tenho uma grande gratidão”.
— Uma das coisas sobre recuperação que eu acho que as pessoas às vezes
ignoram é o fato de ela incluir certos valores. Ser honesto, ser responsável,
ajudar outras pessoas, pedir desculpas quando estiver errado — continua.
“The Way Back” foi dirigido por Gavin O’Connor, custou cerca de US$ 25 milhões e teve grande
parte da filmagem feita em San Pedro, uma área da classe trabalhadora de Los
Angeles.
— Acho que Ben, de uma maneira artística, profundamente humana, queria
enfrentar seus próprios problemas através desse personagem — diz
O'Connor por telefone.