Dorival Caymmi (à esquerda) é celebrado em samba-enredo cantado por João Gilberto em 1989 Reprodução / Acervo O Globo ♪ ANÁLISE – Samba-enredo com o qual a escola de samba Mangueira se (con)sagrou campeã no Carnaval carioca de 1986, com desfile em homenagem a Dorival Caymmi (1914 – 2008), Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm ganhou a voz de João Gilberto (1931 – 2019), mas quase ninguém sabia disso até este mês de janeiro de 2021. Descoberta pelo pesquisador musical carioca Pedro Fontes, inédita gravação em que João canta o samba-enredo de Ivo Meirelles, Paulinho Carvalho e Lula já pode ser ouvida no YouTube desde segunda-feira, 11 de janeiro. São cinco minutos em que João canta a segunda parte do antológico samba-enredo em registro ao vivo captado em show apresentado pelo cantor na França, em 1989. Com a voz sagaz e o violão revolucionário, cujo toque sintetiza a cadência do samba na batida diferente rotulada de bossa nova, João surfa no ritmo da composição, brincando com o tempo. A bela gravação reitera as afinidades de João com o legado de Caymmi. Cabe lembrar que ondas de modernidade sempre se ergueram no mar de Dorival Caymmi, dono de bossa toda própria que soou nova dos anos 1930 aos 1950. Não é por acaso que Caymmi foi compositor recorrente na discografia de João. Já no primeiro álbum, Chega de saudade (1959), João gravou Rosa Morena (1942), samba de Caymmi lançado pelo grupo vocal Anjos do Inferno. No segundo álbum da trilogia fundamental do baiano bossa nova, O amor, o sorriso e a flor (1960), o cantor abordou Doralice (Dorival Caymmi e Antônio Almeida, 1945). No terceiro álbum, João Gilberto (1961), Caymmi marcou dupla presença no repertório com registros de Samba da minha terra (1940) e Saudade da Bahia (1957) na voz e no violão de João. A obra de Caymmi, desde então, nunca mais saiu da boca de João em discos e shows. Caymmi sempre foi moderno, mas era como se João – cantor que redefiniu em 1958 o conceito de modernidade – sempre fizesse questão de apontar a atemporalidade do cancioneiro do compositor conterrâneo. Como João também fez com Ary Barroso (1903 – 1964), diga-se. Por isso, soa tão coerente e natural a gravação em que João Gilberto cai no samba da Mangueira para mostrar ao público francês o que Caymmi tinha de tão especial a ponto de ser exaltado pela Estação Primeira.