"Muitas das pessoas que entram no mercado de trabalho durante uma crise não só correm maior risco de desemprego e subemprego nesse período, mas também ficam sobrecarregadas no futuro", alerta Ignacio González, pesquisador e professor de Economia da American University. Gerações que chegam ao mercado de trabalho em tempos de recessão são prejudicadas, algumas para o resto da vida GETTY IMAGES "Não fale mais nisso, não pense mais nisso: a crise de hoje é a piada de amanhã." Quando o presente é sombrio, o futuro é sempre um lugar tentador para acalmar as ansiedades, uma promessa de conforto para muitos, conforme eternizou o escritor H.G. Wells por meio de um de seus personagens. No entanto, saltar da literatura para a vida pode ser difícil, especialmente quando chega uma crise econômica e você precisa começar sua carreira. Quando a economia entra em crise, jornais e televisões se enchem de gráficos de curvas e barras. O resumo que quase todos nós fazemos é imediato: quando essas linhas vermelhas diminuírem, anos difíceis virão; quando aparecem as cores azuis ou verdes, o pior já passou. E a vida continua, pensamos. Mas não, pelo menos não o mesmo para todos: não para os jovens. Gerações que vão ao mercado de trabalho em tempos de recessão são prejudicadas mesmo quando a crise termina. E algumas delas sobrem os efeitos para a vida toda, alertam os especialistas. É como a dor de um braço amputado, que permanece e formiga por anos, embora a causa não esteja mais lá. Dor fantasma, chamam os médicos. Histerese, dizem os economistas. E em breve os televisores estarão novamente lotados de linhas e barras. Vermelhas. A crise da saúde incuba (e já manifesta fortemente) uma nova crise mundial. a segunda em uma década para a Geração Millennial, nascidos entre 1981 e 1993, que ficou espremida entre elas e para aquela geração que vai pegar seu bastão: a Geração Z (de 1994 a 2010), que já teme ser conhecida como Geração Covid. A armadilha da vida "Muitas das pessoas que entram no mercado de trabalho durante uma crise não só correm maior risco de desemprego e subemprego nesse período, mas também ficam sobrecarregadas no futuro. Essa queda temporária da renda tem grande probabilidade de surtir efeitos permanentes", alerta Ignacio González, pesquisador e professor de Economia da American University, em Washington DC, nos Estados Unidos. Em entrevista à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC), González explica como é essa armadilha. Em primeiro lugar, vem o estrago: a crise econômica e a competição por empregos escassos são ferozes, especialmente se houver muito desemprego persistente. E os jovens começam a ouvir repetidamente os mesmos argumentos. O primeiro é: "Não o contrato porque você não tem experiência suficiente." Com o passar do tempo, ele se torna: "Não o contrato porque seu currículo tem lacunas". E quando acaba a recessão, a justificativa apresentada é: "Não te contrato porque, na realidade, posso ter alguém mais jovem com a mesma experiência". 'Condenação' De certa forma, eles já estão marcados: acabam por se tornar perfis inexperientes para cargos proporcionais à sua idade e candidatos muito velhos para competir com os mais jovens pelos cargos de início de carreira e de baixa remuneração. E como todas as maldições, é acompanhada por sua profecia. "A partir daí, é muito provável que suas carreiras acabem se caracterizando por empregos intermitentes ou de baixa qualidade, sofrendo uma queda na renda que condiciona toda a sua vida", diz González. "Essas pessoas acumulam menos riqueza (poupança), têm dificuldade de alcançar uma casa própria (suas poucas economias vão para aluguel e também não vão receber crédito por seu histórico de trabalho descontínuo) e, em geral, seu planos de vida e formação familiar, com todos os problemas psicológicos que lhe estão associados", explica o economista da American University. Pobreza, divórcio e vidas sem filhos Algumas gerações ficam presas em seus primeiros dias: elas acabam sendo muito inexperientes e muito velhas GETTY IMAGES "O que foi, é o que há de ser; o que se fez, isso se tornará a fazer. Não há nada de novo debaixo do Sol." (Eclesiastes 1: 9). À sua maneira, a economia segue a mesma lógica desse provérbio bíblico. Quando um economista fala sobre o que vai acontecer no futuro, ele geralmente tem a cabeça no passado: nas evidências acumuladas. Em busca dessas evidências, os pesquisadores Hannes Schwandt e Till M. von Wachter (Northwestern University e UCLA University) mergulharam, em um estudo recente, nos registros estatísticos dos EUA para acompanhar a vida de 4 milhões de americanos que saltou para o mercado de trabalho durante a crise de 1982. Como se fossem fantasmas do conto de Natal de Dickens, eles agarraram suas mãos e revisitaram os nervos de suas primeiras experiências de trabalho, anotaram seus salários, se esgueiraram em seus momentos felizes (compra de casa, casamento, filhos) e passaram seus dias malfadados (divórcios e álcool, doença, depressão etc.) até atingirem a velhice e até o fim da vida. E então eles compararam suas trajetórias com as gerações ao seu redor, cuja jornada começou em tempos melhores. Pouco mais de um ano de recessão — começou em julho de 1981 e terminou em novembro de 1982, segundo o Federal Reserve — fez com que aqueles infelizes jovens acumulassem perdas de renda média de 9% apenas nos primeiros 10 ou 15 anos, segundo cálculos de von Wachter, sendo pior para trabalhadores com menos qualificação. Isso significa que suas perdas nesse período de mais de uma década podem variar entre US$ 19 mil e US$ 36 mil (em valores atuais, o equivalente entre R$ 96 mil e 182 mil), de acordo com a pesquisa. Mas não só isso, quando atingiram uma idade entre 50 e 55 anos, tiveram menos casamentos e, ao mesmo tempo, enfrentaram mais divórcios. E suas chances de ter um filho também eram menores do que as de outras gerações. Mortes por desespero A deterioração da vida também chegou à saúde, apontam pesquisadores. A expectativa de vida caiu de seis a nove meses em relação à média estimada. O efeito da crise foi de "uma morte adicional a cada 10 mil pessoas a cada ponto percentual a mais na taxa de desemprego" no início de suas carreiras. "Esses aumentos de mortalidade decorrem principalmente de doenças ligadas a hábitos pouco saudáveis, como fumar, beber e se alimentar mal. Descobrimos, em particular, um risco significativamente maior de overdose de drogas e outras condições conhecidas como 'mortes por desespero' (suicídio e deterioração por vício)", explica Schwandt. A crise desaparece e os danos permanecem. São 16 meses que afetam toda uma vida. A histerese de novo, em todo seu esplendor. Impacto na saúde mental Essas constatações não surpreendem Rosa M. Urbanos-Garrido, professora de Economia Aplicada da Universidade Complutense de Madri, que estudou os efeitos da Grande Recessão de 2008 na saúde dos espanhóis. "O desemprego costuma estar associado a problemas relacionados à saúde mental", explica ela à BBC News Mundo. "A depressão, a ansiedade… O medo de não poder ganhar a vida influencia, mas não só: o trabalho é uma plataforma de contatos sociais e de autoestima." Urbanos-Garrido conta que, no início da situação de desemprego, a saúde geral pode até melhorar, mas aos poucos o sentimento de angústia aumenta e, para muitos, a falta de emprego acaba sendo uma obsessão que vai diminuindo a importância do resto da vida, incluindo a saúde. "No início, o estresse diminui à medida que eles têm mais tempo livre e se beneficiam de não sofrerem de doenças relacionadas ao trabalho, mas com o aumento da situação de desemprego, seu estado se deteriora na forma de ansiedade, consumo de álcool e cigarro, obesidade e má alimentação em geral… Tudo está sendo negligenciado, mas o indivíduo continua relatando que sua saúde está boa. O que ele pensa é sobre sua situação de trabalho e o resto não é considerado problema." Urbanos-Garrido também alerta que o momento de desemprego não é irrelevante: "Se o problema não é individual, mas uma situação de crise generalizada, os problemas mentais pioram". É como se houvesse um contágio de desespero para o qual não há máscaras. Esse já é o destino da geração millennial e da geração z ou covid? Fernando tem uma companheira e um menino de dois anos. Ele já foi motorista de ônibus, segurança e pedreiro, às vezes (muitas) na economia informal. Fernando e sua família foram morar com seus pais em Soria (Espanha) há um ano porque ele perdeu o emprego e suas economias não eram suficientes para manter a vida onde estava. Fernando, de 34 anos, nem se chama Fernando porque não quer que seu nome verdadeiro apareça nesta reportagem da BBC News Mundo. Ele diz que tem vergonha. Marta Vegas García também é espanhola. Mais jovem, 23 anos. Ela é engenheira biomédica e também possui mestrado. Há uma semana, ele publicou um telefonema se não fosse por ajuda, sim, de descrença em sua conta do LinkedIn. "Atualizo meu currículo, mas não há resposta. Adapto meu currículo a depender do posto para o qual me inscrevo: não há resposta. Contato empresas e trato de ser proativa. Sem resposta. Me sinto invisível." "Não somos valorizados", disse Vegas à BBC News Mundo. "Vemos nossos sonhos e nosso futuro frustrados", lamenta, e embora ela presuma que a crise de saúde tenha influência, não parece convencida de que este seja o único motivo. "Todos (eu e meus amigos) concordamos que é impossível emancipar-nos, ter acesso a uma casa e muito menos constituir família um dia." Este é o fio que liga a grande recessão econômica de 2008 e a crise do covid-19 em 2020, e dois estranhos como Fernando e Marta. Um, millennial, a outra, da geração Z. Eles não estão sozinhos e parecem representar os sentimentos de muitos de seus contemporâneos. Basta escrever no campo de busca de uma rede social "Na minha idade, meus pais …" e as mensagens se repetem em vários idiomas: "Na minha idade, meus pais tinham empregos e casas, só tenho ansiedade." "Na minha idade, meu pai tinha dois filhos, uma casa, um emprego fixo, um carro e vários anos de contribuições. Não tenho nada disso." "Na minha idade, meu pai tinha economizado por 10 anos e eu vivo de empregos precários e em um quarto". E alguns ainda não imaginavam que chegaria a crise do coronavírus. O estrago da crise do coronavírus "Acho que esse bug foi a gota d'água para a nossa geração", diz Fernando, referindo-se ao coronavírus. Sua intuição é boa. "Há um número notável de trabalhadores que, por terem sofrido desemprego na crise anterior e não ter se consolidado no emprego, também estão sofrendo nesta", observa Ignacio González, da American University. "Existem mercados de trabalho, como o espanhol, que nunca se recuperaram totalmente, então começamos essa crise já com níveis de desemprego bastante altos", afirma. São problemas socioeconômicos que atravessam as vidas há uma década. Assim, se a crise de 1982 afetou a vida daqueles jovens, o que esperar da crise de 2008, definida pelo Fundo Monetário Internacional como "o colapso econômico e financeiro mais grave desde a Grande Depressão dos anos 1930"? Ou desta crise do coronavírus, que o Banco Mundial prevê que o PIB (soma de todas as riquezas produzidas do país) recue mais que o dobro do que na crise anterior? Alguns especialistas já veem danos na vida da geração millennial. Na Europa, o desemprego e a precariedade no emprego já eram maiores antes da crise da covid-19 do que os enfrentados pela geração que os precedeu quando tinham a mesma idade, de acordo com relatório do Centro de Pesquisas CaixaBank. Nos EUA, a riqueza líquida mediana (ativos financeiros e imobiliários menos dívidas) da geração millennial entre 25 e 34 anos (em 2016) é 60% menor do que a de uma geração X quando eles estavam nela faixa etária, conforme esse estudo. Na Espanha, os dados são ainda mais assustadores: a riqueza média é de 3.000 euros, em comparação com os 63.400 euros que suas contrapartes da geração anterior tinham na mesma fase. E a casa, é claro. O número de millennials com casa própria nos EUA é 8 pontos percentuais menor, de acordo com o centro de pesquisas The Urban Institute. Pior na Espanha: 44% contra 65% da geração X (CaixaBank Research). E no Reino Unido, um terço deles nunca será capaz de pagar uma casa, de acordo com o think tank Resolution Foundation. Na América Latina, a crise de 2008 passou na ponta dos pés, pois a região vivia um momento de crescente prosperidade. E, no entanto, "a porcentagem de latino-americanos que declarou não ter dinheiro para comprar uma casa cresceu quase 20 pontos entre 2012 e 2019, chegando a alarmantes 40%", segundo relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Além disso, desta vez a crise não vai passar por muito tempo: após os confinamentos, cerca de 65% dos domicílios mais pobres da região sofreram pelo menos uma perda de emprego entre familiares, segundo o mesmo órgão. E o BID observa: mais de 1 milhão de estudantes desistirão da trajetória por causa da pandemia, com a consequente perda de poder aquisitivo no futuro. O Fórum Econômico Mundial, por sua vez, vê as aposentadorias em risco até o ano 2050, quando atingem a idade de se aposentar, devido à baixa poupança. É possível fazer algo? E neste ponto, é possível fazer algo para deter esse estrago para a geração millennial e seus sucessores? "Há bastante margem para melhorar a resposta à crise", afirma o economista Ignacio González. "Nesse contexto de estresse financeiro para muitas famílias, é fundamental o desenvolvimento de políticas públicas que garantam o acesso à moradia popular e estabeleçam mecanismos de transferência de renda alheia ao histórico de trabalho, como rendas mínimas. Em questão trabalhista, o objetivo seria prevenir que a precarização do trabalho e a queda na renda sofrida por muita gente durante a crise se tornem crônicas e, claro, que isso não leve a uma queda nas suas futuras aposentadorias." "Os afetados nessas gerações, com duas crises consecutivas, terão dificuldades se os mecanismos de redistribuição não forem habilitados, tanto intrageracionais (de ricos para pobres na mesma geração) e intergeracionais", afirma. Urbanos-Garrido, professora da Universidade Complutense, concorda com as medidas de transferência de renda e acrescenta: "Os sistemas de saúde também devem se adaptar para enfrentar os crescentes problemas mentais que provavelmente se repetirão na atual crise". Parece claro que essas gerações não têm esperança de receber alguma ajuda. Uma pesquisa recente da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, com quase 5 milhões de pessoas revelou que os jovens entre 18 e 34 anos são os mais desiludidos com o funcionamento da democracia. "Esta é a primeira geração na memória em que a maioria global está insatisfeita [nessa faixa etária] com a forma como a democracia funciona", alerta Roberto Foa, principal autor do relatório. Um pedido de ajuda ou talvez um grito de advertência. Vídeos: Viva Você