'Todo mundo quer cuidar de mim', do Brava, fez sucesso há 15 anos. Paula Marchesini fala ao G1 sobre os tempos de banda e os estudos em universidades como Johns Hopkins e Harvard. Para quem reclama que falta profundidade nas letras da música brasileira, uma boa saída pode ser ler os textos acadêmicos de Paula Marchesini, cantora e filósofa. Mas não precisa ir tão longe assim. As letras de Paula, na carreira solo ou na banda Brava, já têm um quê de filosofia. Ela relatou o "medo de se ver" e o "medo de viver" ("Aprendi sozinha") e cantou versos sobre sofrimento e inadequação em "Como for" e “Todo mundo quer cuidar de mim”, maior sucesso do Brava e trilha de "Malhação". O sexteto carioca durou entre 2000 e 2006 (ouça músicas no podcast acima). Depois do Brava, Paula fez doutorado em Filosofia na Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos. Também estudou e deu aulas em Harvard. Entre outros temas, escreveu sobre a eternidade na obra do escritor argentino Jorge Luis Borges; o conceito do tempo segundo o filósofo francês Gilles Deleuze; e a estética da vida após a morte na obra do filósofo dinamarquês Kierkegaard. Ao G1, ela explicou por quais motivos o Brava durou apenas um álbum e falou da vida acadêmica e da carreira solo. Paula Marchesini: em 2004, nos tempos da banda Brava; e em 2020, na carreira solo Divulgação/Adriana Lins e Acervo Pessoal G1 – Quando eu te falo do Brava, o que te vem à cabeça, quais as memórias você tem mais fortes? Paula Marchesini – Boa pergunta, deixa eu pensar. Eu acho que as minhas memórias são bem pessoais. Lembrar da minha juventude, sabe? De todos os temas que me levaram a escrever as músicas que estão no CD do Brava, né? O meu casamento, por exemplo, a história de amor do meu casamento. Que infelizmente terminou há uns três anos. Não, nossa, tem mais tempo… Mas tem meus colegas de banda também. A gente se divertiu muito. Fazendo show e nossa primeira turnê. Um bando de garotos, jovens, tocando juntos. Era muito legal e tenho muitas boas memórias. Mas ser jovem é difícil também. [risos] Quando eu comparo a minha estabilidade emocional hoje em dia com o que era naquela época, eu me sinto bem mais segura, mais confiante. G1 – Quanto tempo a banda durou? Paula Marchesini – A gente começou quando eu tinha 18 anos, então isso foi no ano 2000. Nosso nome era Magnólia na época. Em 2003, a gente assinou um contrato com a Universal. A Universal encontrou a gente e quis assinar o contrato. Não buscamos nada. A gente era a banda com menos ambição do Rio de Janeiro. Nossos amigos todos estavam buscando contrato com gravadoras na época e a gente nunca tinha procurado nada. Gravamos uma demo e chegou nas mãos da Universal. A pré-produção do disco com o Paul Raulphes foi muito rápida. Eu acho que a gente gravou o disco todo em menos de dois meses. Rapidíssimo, a música estava em primeiro lugar em São Paulo, "Todo mundo quer cuidar de mim", trilha sonora da "Malhação". E ficou quatro meses em primeiro lugar. Depois entrou outra música nossa, que foi "Só porque não é bom", que era uma das últimas faixas do disco, e ficou um tempo em primeiro lugar. Foi em 2006 que eu decidi fazer outras coisas. Não foi só uma decisão minha, não. A gente estava um pouco em uma encruzilhada com a Universal. Acho que a gente tinha visões diferentes de como a banda tinha que ser, sabe? Inclusive, cada membro da banda tinha uma visão diferente também do que tinha que ser. Esses conflitos levaram ao fim da banda e nessa época eu decidi voltar aos meus estudos. Eu tinha bacharelado em Filosofia e fui fazer um mestrado em literatura na PUC, em 2006. Foi quando a gente teve a reunião de banda e falou "não dá mais, não tá acontecendo mais". Mas foi um fim bem amistoso, não teve nenhuma briga nem nada. [Risos] A gente continua amigo até hoje. A banda Brava em 2004, ano de lançamento do primeiro e único disco deles Divulgação/Universal Music/Adriana Lins G1 – Quando você foi pros Estados Unidos? Paula Marchesini – Eu vim para os Estados Unidos em 2010. Terminei o mestrado na Puc em 2008. E eu fiquei uns dois anos, gravei um CD independente chamado "Silêncio". Gravei com o meu marido na época, o Apoena Frota [cantor, produtor e filho de Marcos Frota]. E músicos que eram amigos nossos. Foi lançado independentemente. Em 2009, eu comecei a pensar que eu queria fazer um doutorado aqui nos Estados Unidos e comecei a aplicar para universidades. E aí rolou uma oportunidade de estudar na Tufts University, em Boston, para fazer um segundo mestrado em Filosofia. Me ofereceram um bolsa. Aí eu vim, terminei esse mestrado em 2013. E aí passei para um doutorado na Johns Hopkins University, em Estudos Humanísticos. Eu acabei de terminar em fevereiro, me formei. E estou gravando um disco novo agora. G1 – O que você estuda, sei que deve ser bem específico, mas como você explicaria para alguém que é leigo? Quais foram os temas da sua dissertação de mestrado e da tese de doutorado? Paula Marchesini – Eu amei a pergunta, obrigada. Eu comecei a ficar muito fascinada com o processo criativo de escrever, sabe? De escrever músicas e escrever textos também. Eu sempre escrevi poemas e contos. Até cheguei a escrever um romance uma época, quando eu tinha uns 19 anos. Escrevi um romance meio curto e tal, mas não era muito bom não, sabe? Eu tinha muito essa coisa de escrever o tempo todo. Esse processo criativo é muito misterioso, é uma coisa que bate uma inspiração que não se sabe de onde vem e as palavras vão se escrevendo sozinhas e parece realmente que você está recebendo uma mensagem pronta de algum lugar divino. Uma coisa muito mágica. Qualquer um que já experimentou esse processo sabe exatamente do que eu estou falando. Tem vezes que escrevo músicas que eu não lembro de ter escrito. Depois ouvindo a música eu falo: como foi que eu escrevi isso? Não tenho nem ideia de onde isso veio. E isso tudo começou a me intrigar muito e eu comecei a me interessar por estudar esse processo criativo filosoficamente. Pensar sobre o que é a resposta: isso vem de Deus? "Eu queria saber outras perceptivas sobre esse assunto filosófico. Então, a minha pesquisa em filosofia é bem centrada nesse processo criativo. Que que é? De onde vem? Quais as habilidades que envolve e os tipos de resultado que saem de processos criativos? Eu escrevi minha tese de doutorado em parte sobre a Clarice Lispector, porque ela escreve muito sobre isso, sobre processo criativo." Paula Marchesini na gravação do primeiro álbum do Brava Divulgação G1 – Parece bem interessante. Pós-Brava, eu cheguei a ouvir coisas que você fez, mas você poderia falar um pouco da sua produção musical pós-Brava? Paula Marchesini – Em 2016, eu comecei a experimentar gravar minhas músicas em casa, usando o Garage Band, o software mais simples do mundo fazendo umas batidas e gravando baseado na experiência que eu tive observando os profissionais da Universal, observando o meu ex-marido também gravando. A gente ainda está trabalhando também. Eu passei muito tempo na minha juventude sentada em frente ao computador observando esses produtores. Então, eu comecei a experimentar com isso em 2015 e decidi gravar o meu disco inteiro, de doze músicas, sozinha no meu apartamento. Tocando todos os instrumentos, a maior parte deles virtuais. Em Baltimore, quando estava fazendo o doutorado. Saiu o disco e eu acho que ele tem um estilo. É um trabalho que me agrada, porque ele foi exatamente o que eu queria que ele fosse. Eu sei muito mais de produção e gravação do que eu sabia quando eu comecei a gravar esse disco. Eu aprendi muito, li muito sobre o assunto, vi vários tutorais. A experiência de gravar o disco inteira foi muito intensa. O nome do disco é "Fellow Shade", e saiu em 2017. G1 – Durante o mestrado e o doutorado, você também deu aulas? Paula Marchesini – Eu dei muitas aulas. Dei algumas aulas em Harvard, estudei lá uma época. Dei aula na Tufs e na Johns Hopkins, porque faz parte do processo de estudar. Mas eu vou te dizer que não é minha vocação. Eu até apliquei para alguns empregos de professora quando eu terminei meu doutorado em fevereiro. Mas aí veio essa pandemia e não saiu nada. E eu fiquei feliz de não ter conseguido, porque para ser sincera não é muito o que eu quero fazer. Paula com os integrantes da banda Brava, na gravação do álbum de estreia Divulgação G1 – O que mais você sente falta daqueles seis anos no Brava e o que você sente menos falta? Paula Marchesini – O que eu sinto menos falta é de ter uma gravadora me dizendo como eu devo fazer o meu trabalho. Isso era um problema muito grande pra mim. Isso não é culpa da Universal, eu conheci pessoas maravilhosas, eu amo o Paul Raulphes de paixão. O problema é que gravadoras são assim mesmo. É assim que eles trabalham. Para focar em vendas, você tem que fazer certas coisas. Você tem que mudar a letra da música, você tem que pensar no marketing, na imagem. "Eu lembro de eles pedirem para eu pintar o meu cabelo de vermelho e eu disse que não. Eu queria ser eu mesma, não queria ser uma imagem, uma coisa falsa. Eu também tinha muito problema com a forma com a qual a mídia brasileira tratava as mulheres. A Universal queria que eu fosse a um programa de televisão que eu achava machista e eu dizia 'não, eu não vou participar'. Eu acho um absurdo, eu acho que esse programa não devia existir." G1 – Qual era o programa? Paula Marchesini – Ah, eu prefiro não citar, não dizer o nome dos programas. Eu até nem lembro, mas eram um monte desses programas que têm mulheres nuas. Eu não acho que tem problema nenhum em nudez, ou nada assim, mas eu acho que mulheres artistas têm mais a oferecer do que isso. E quando a mídia foca exclusivamente no aspecto físico das mulheres, isso é um problema muito sério. Eu acho que no Brasil, pelo menos na época, isso era um problema sério. E eu não queria colaborar com isso, ser conivente com isso. Agora, o que eu sinto mais falta, sem dúvidas, são os meus companheiros de banda. Ter uma banda é divertido, você viaja todo mundo na mesma van e meus companheiros de banda eram muito engraçados, um deles era o meu primo. Ele sempre foi uma pessoa muito importante na minha vida. A ideia de montar o Brava foi dele. A gente se divertia muito juntos. Então, disso eu sinto falta. Um dia, eu devo ter dado umas 70 entrevistas em seguida uma da outra. E todos os jornalistas da época, sem exceção, começaram com a pergunta: "O que você acha de ser uma mulher musicista no Brasil?" Eu ficava pensando assim: "Gente, eu tenho tanta coisa que eu quero falar, sabe? Por que eu não posso ser tratada como uma criadora, como qualquer homem é tratado? Focar no que eu estou fazendo". Eu queria as perguntas que você está me fazendo aqui. Esse tipo de perguntas que nutre a minha alma, é sobre isso que eu quero falar. E eu lembro que isso era um problema muito grande pra mim. Sem dúvida, contribuiu para a minha decisão de abandonar a música na época. Talvez tenha sido o principal fator. Paula Marchesini, após o Brava, em duas fotos de 2010 Divulgação G1 – Como estudar o processo criativo mudou o seu próprio processo criativo? Paula Marchesini – A coisa mais importante que eu aprendi é que é impossível entender o processo criativo. Foi a grande lição. O processo criativo está muito além da minha capacidade racional de entender. Isso é um ponto que a Clarice Lispector enfatiza muito nos livros dela. Eu consigo viver e ter essa experiência, mas eu não consigo dar um passo para trás e racionalmente entender essa experiência. Ela é maior do que isso. Então, uma das conclusões a que eu cheguei depois de terminar meu doutorado foi: eu vou escolher o caminho da coisa maior, eu quero focar mais na criação e abandonar um pouco esse projeto de entender o processo criativo. É uma coisa que chega e pega a gente. A gente vira um instrumento daquela criação. Eu prefiro escolher o caminho de experimentar do que de virar uma professora acadêmica que estuda isso. G1 – Quando você ouve Brava agora, principalmente a que mais tocou, 'Todo mundo quer cuidar de mim', qual seu sentimento hoje? Você tem orgulho de quem você era, de como você escrevia e cantava naquela época? Ou você pensa 'nossa, eu era essa pessoa'? Paula Marchesini – Olha, é engraçado assim, até desculpa se eu chorar um pouco. Porque… [começa a ficar emocionada] Desculpa. G1 – Imagina. Pode se recompor, fica tranquila. Temos todo o tempo… Paula Marchesini – Isso é uma coisa que acontece frequentemente, eu diria que a cada dois anos eu pego para ouvir o Brava. E eu falo "Vamos ouvir de novo esse disco". "A sensação é ao mesmo tempo de pensar 'nossa, tadinha, eu sofria nessa época'. Eu tenho uma certa pena da jovem, da adolescente que eu fui, escutando as letras. Porque muitas das coisas que eu falo nas músicas, eu de alguma forma superei. Não tudo…" Paula Marchesini em 2010 Arquivo Pessoal Mas outra parte eu penso assim: "Nossa, quando eu tinha 16 anos eu escrevi umas coisas que… como é que eu sabia dessas coisas?" A minha sensação pessoal é de ter aprendido isso muito mais tarde. Então, rola uma certa sensação de… rola uma profecia em certas letras. Na minha cabeça, eu passei por essas coisas muito mais tarde. E eu já escrevia sobre isso com 16 anos. É uma sensação estranha. Eu acho que qualquer um que já escreveu tem essa sensação. Muita coisa sobre a qual eu escrevia ali, por exemplo, a música "Aprendi sozinha". Essa música ainda fala muito sobre quem eu sou hoje. Ela expressa muito bem uma parte da minha personalidade. Ela me toca até hoje. Eu não sinto que eu passei dessa fase. Eu sinto que é uma música que eu poderia ter escrito hoje mesmo. G1 – Eu sei que é muito mais do que isso, mas você acha que como um produto, você sente que o álbum envelheceu bem? Tanto de sonoridade, como das coisas que você diz… quando eu ouço tudo ainda faz sentido, envelheceu bem. Paula Marchesini – Ah obrigada, muito obrigada… Isso me deixa muito feliz, porque eu acho que isso foi em grande parte pelo trabalho do Paul Raulphes como produtor. Ele fez um trabalho muito legal. Ele é muito bom e ele abraçou a causa das minhas letras desde o início. Ele amava aquelas músicas, defendia a gente o tempo todo. Eu acho que ele fez um trabalho maravilhoso dando vida para essas músicas que ainda me tocam e ainda tocam bastante gente. Eu recebo ainda muito mensagem do pessoal no Facebook. Às vezes, algumas pessoas perguntam "O que aconteceu com o Brava? Por que vocês terminaram?". G1 – É natural, as pessoas ouvem, vão atrás do segundo CD, vão ver se ainda está na ativa e se perguntam: 'Por que acabou?' Falando nisso, tem alguma chance de o Brava voltar? Paula Marchesini – Olha, o Brava eu acho que não vai voltar não. Porque cada um tomou um rumo diferente da banda, o pessoal tem emprego. O Raphael Nurow trabalha até para o governo agora. O Flávio Galvão é advogado. O [Rodrigo] Bark é artista, fotógrafo. O Fábio [Escovedo] é cineasta. O Bruno é empresário. Mas eu vou te falar que eu estou com um plano de fazer uma live sozinha, eu com violão tocando as músicas do Brava pros fãs. Isso deve acontecer em breve. G1 – E como você vai fazer para cantar e não vai ficar emocionada? Paula Marchesini – Não vai ter como não… Vai rolar uma choradeira séria. Porque me emociona duplamente. Revisitar as músicas é como voltar no tempo. Você voltar e se ver como você era há 20 anos. Isso é emocionante pra todo mundo. E segundo eu sei que essas músicas fizeram parte da vida das pessoas. G1 – Além da música e dos estudos, o que mais você faz? Paula Marchesini – Eu sou diretora de uma editora de livros nos Estados Unidos, que publica livros que promovem melhorias sociais em diversas áreas. Uma das coisas mais importantes é que a gente publica livros que ajudam a eliminar terrorismo e extremismo em vários países. Então, esse é um dos trabalhos que eu estou fazendo… digamos assim, é meu trabalho "do dia", né? Mas assim que eu volto para casa e estou sozinha, aí é a música, é o que eu amo mais do que tudo. VÍDEO: Semana pop explica temas da semana