'Vanusa teve importância especialmente na década de 70', diz Mauro Ferreira ♪ OBITUÁRIO – A morte de Vanusa Santos Flores (22 de setembro de 1947 – 8 de novembro de 2020) – ocorrida em casa de repouso de Santos (SP) na madrugada deste domingo, 8, por causa de insuficiência respiratória – entristece o Brasil não somente pela perda da artista, paulista de Cruzeiro (SP) criada em cidades do interior de Minas Gerais. A tristeza decorre também da sensação de que, ao sair de cena aos 73 anos, Vanusa deixa a impressão – aliás, uma certeza para quem conhece a obra da artista – de ter sido cantora maior do que (quase sempre) se supôs ao longo de carreira iniciada em 1967 com a gravação de single com Pra nunca mais chorar (Eduardo Araújo e Carlos Imperial), canção sintonizada com o romantismo pueril da Jovem Guarda. Em evidência nos últimos anos por conta de problemas de saúde que vieram ao público em setembro de 2009, quando viralizou vídeo em que Vanusa se atrapalhou com a letra e o ritmo do Hino Nacional Brasileiro (Francisco Manuel da Silva, 1822, com letra de Osório Duque Estrada, 1909) ao cantar o tema em cerimônia oficial, a artista deixa discografia irregular, composta por 17 álbuns. Vanusa na capa do álbum 'Viva Vanusa', de 1979 Reprodução O ápice dessa obra fonográfica – tanto em termos artísticos quanto comerciais – está concentrado nos discos lançados por Vanusa ao longo da década de 1970. Capas de álbuns lançados por Vanusa entre 1968 e 1971 Reprodução / Montagem Mauro Ferreira Após primeiro álbum ainda dentro do espírito da Jovem Guarda, Vanusa, lançado em 1968 com repertório que destacou abordagem pop de Mensagem (Cícero Nunes e Aldo Cabral, 1946), sucesso de Isaura Garcia (1923 – 1993) na era do rádio, a cantora começou a incursionar pelo soul no segundo álbum, também intitulado Vanusa e editado em 1969 com certa dose de psicodelia traduzida pela imagem da capa. Em 1971, a artista lançou um terceiro álbum ainda mais arrojado e embebido em soul, com resquício de psicodelia na faixa Ponte aérea: 15 horas (Wilson Miranda e Messias, 1971). É nesse disco, também intitulado Vanusa, que Antonio Marcos (1945 – 1992) aparece pela primeira vez na discografia da cantora, com quem se casaria em 1972. Vanusa morre aos 73 anos em Santos Além de ser o autor (em parceria com o irmão Mário Marcos) da música que abre o álbum, 1971, Antonio Marcos escreveu e cantou com Vanusa a letra do soul Agora eu sei, versão em português de Where are you going to my love? (Billy Day, Tony Hiller e Mike Leslie, 1970). A importância de Antonio Marcos na vida e na carreira de Vanusa foi tão fundamental que chega a causar estranheza o fato de Vanusa ter morrido em 8 de novembro, dia em que o cantor aniversariava (o artista poderia estar hoje festejando 75 anos, se não tivesse morrido há 28 anos de problemas hepáticos). Capas dos álbuns lançados por Vanusa entre 1974 e 1979 Reprodução / Montagem Mauro Ferreira Em que pesem as estranhezas e as ousadias estilísticas desses álbuns iniciais de Vanusa na gravadora RCA-Victor, a cantora será sempre mais lembrada pelos cinco álbuns que lançou entre 1973 e 1979. O LP Vanusa de 1973 marcou a estreia da artista na gravadora Continental e o reencontro da cantora com o sucesso popular. A faixa Manhãs de setembro, também lançada em single, estourou nas rádios, evidenciando a beleza e a força da música composta pela própria Vanusa em parceria com Mario Campanha. Também compositora, Vanusa fez pulsar na obra autoral veia feminista que ficaria mais aflorada em 1979, com o discurso motivador entranhado na letra da canção Mudanças (Vanusa e Sérgio Sá), hit do álbum Viva Vanusa (1979). Com o sucesso de Mudanças e o fracasso do álbum posterior Vanusa, de 1980, a direção de gravadora RCA – para a qual a artista voltara em 1975 – induziu a cantora a explorar essa veia feminista em 1981 com a gravação de Eu sobrevivo, versão em português (escrita por Paulo Coelho) de I will survive (Freddie Perren e Dino Fekaris, 1978), hino feminino da disco music, propagado em escala mundial em 1979 na voz da cantora norte-americana Gloria Gaynor. Único hit radiofônico do álbum Vanusa (1981), disco em que a artista foi pioneira ao versar sobre a violência doméstica contra a mulher na música autoral S.O.S. mulher (Vanusa, 1981), Eu sobrevivo foi o último sucesso de Vanusa. Houve derradeira tentativa de mantê-la em evidência com o álbum Primeira estrela, lançado em 1982, mas, a partir de então, a cantora passaria a viver das glórias do passado. Uma grande cantora, diga-se. Com voz afinada, de emissão precisa e por vezes dramática, Vanusa valorizou músicas como Sonhos de um palhaço (Antonio Marcos e Sérgio Sá, 1974), sucesso do quinto álbum da artista, também intitulado Vanusa e lançado em 1974, ainda no rastro do sucesso de 1973, ano em que a cantora gravou – de forma anônima – o tema de abertura do então novo programa Fantástico (TV Globo), composto por Guto Graça Mello com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Em 1975, Vanusa – até então vista como cantora popular, eufemismo para cafona – tentou aproximação com a elite da MPB através do álbum Amigos novos e antigos, título mais coeso da discografia da cantora. Nesse álbum, Vanusa apresentou ao Brasil um samba de Luiz Melodia (1951 – 2017), Congênito, e lançou Paralelas, uma das mais belas canções de Belchior (1947 – 2017). A interpretação de Paralelas exemplificou a inteligência do canto geralmente exteriorizado de Vanusa, que, sem perda da potência vocal, transmitiu toda a melancolia dessa canção em que Belchior retratou a automação humana na selva das cidades. Em 1977, licenciada pela RCA para a gravadora Som Livre, Vanusa tentou manter a aproximação com a MPB no álbum 30 anos, cujo título aludia à idade da cantora na época. No LP 30 anos, Vanusa apresentou a primeira gravação de Avohai, canção de Zé Ramalho (o registro do autor seria lançado no mesmo ano, mas em dezembro), e lançou música inédita de Caetano Veloso (Duas manhãs). Vanusa em foto promocional do último álbum da cantora, 'Vanusa Santos Flores', de 2015 Gal Oppido / Divulgação Apesar de tantos feitos, Vanusa nunca foi percebida de fato como uma cantora de MPB, o que a levou de volta para o universo da canção mais simples e popular. Com a abertura do mercado para o rock brasileiro, a partir de 1982, Vanusa foi se tornando paulatinamente uma voz do passado – como tantas vozes dos anos 1960 e 1970. Talvez por não ter sabido se manter atual, a cantora perdeu o rumo da carreira e foi gravando cada vez menos a partir da segunda metade dos anos 1980. E, quando os discos vieram, como Cheiro de luz (1988), Viva paixão (1991) e Hino ao amor (1994), quase ninguém ouviu por se tratarem de álbuns editados por gravadoras pequenas, sem alcance na mídia. O resultado é que Vanusa praticamente sumiu nos anos 1990 e 2000 – sumiço reforçado por lançamentos bem eventuais (e discretíssimos) como o do DVD Cantares (2008), apresentado um ano antes do episódio do Hino Nacional Brasileiro. A única volta relevante foi a promovida por Zeca Baleiro que, comovido com o fato de a cantora ter sido reduzida a um meme a partir de 2009, bancou e produziu o álbum Vanusa Santos Flores, disco de superação, gravado desde 2013, antecedido por EP em 2014 e enfim lançado em outubro de 2015 após dificuldades na produção. Neste disco, a voz de Vanusa já se apresentou sem a potência dos áureos tempos, mas as interpretações sensíveis de canções como Esperando aviões (Vander Lee, 2003) e Haja o que houver (Pedro Ayres Magalhães, 1997) mostraram que, sim, a grande cantora ainda estava lá, porque “cantar é vestir-se com a voz que se tem”, como já sentenciou Teresa Cristina em verso lapidar da música de 2007. E Vanusa parecia saber que aquele era seu derradeiro figurino. “Alivia a minha história / O mundo anda em linha reta / Eu ando em linha torta”, suplicou nos versos de Abre aspas (Nô Stopa e Marcelo Bucoff, 2002). Por linhas tortas, Vanusa seguiu trajetória nem sempre condizente com a beleza da voz que ecoou com força no Brasil dos anos 1970, ainda que esse Brasil quase nunca tenha reconhecido Vanusa como a grande cantora que ela muitas vezes foi.