Saiba como briga entre Tiririca e Roberto Carlos abriu precedente judicial para jingles com versões de sucessos de sertanejo, pagodão, pisadinha… Compositores reagem contra uso. Da esquerda no sentido horário: Baitaca, Barões da Pisadinha, Manno Góes e Tones and I, compositores de músicas que foram bases para jingles eleitorais em 2020 sem autorização deles Divulgação e Felipe Oliveira A voz rasgada do gaúcho Baitaca já estremeceu duas vezes a campanha eleitoral gaúcha de 2020. Primeiro, a música “Do fundo da grota”, fenômeno que revitalizou a música “galponeira”, começou a pipocar em versões de jingles. Depois, Baitaca surgiu de bombacha e chimarrão na mão avisando no Facebook: "Não gostaria de ver minha música em disputa politica!". Alguns desistiram de versionar “Do fundo da grota”, mas ainda se acha fácil no YouTube jingles com o som da discórdia. O caso não é isolado: as eleições de 2020 no Brasil chegam cheias de melodias conhecidas e autores contrariados. De sucessos sertanejos a hits gringos, com destaque para o forró de pisadinha, ritmo do momento pelo interior do país, tudo vira jingle. YouTube virou mercado aberto com produtoras oferecendo a criação de versões de sucessos diversos em forma de jingle político Reprodução ‘Portão’ aberto por Tiririca A prática é antiga, mas aumentou com um precedente: uma disputa entre Tiririca e Roberto Carlos. Ela começou em 2014, quando o clássico refrão "Eu voltei, agora pra ficar, porque aqui, aqui é o meu lugar" virou "Eu votei, de novo vou votar, Tiririca, Brasília é seu lugar". Tiririca chegou a ser condenado em 1ª instância pelo uso da música “O portão” em propaganda eleitoral sem autorização dos autores, Roberto e Erasmo Carlos. Mas o deputado federal pelo PL recorreu e, no fim de 2019, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reverteu o resultado. Tiririca chegou a ser condenado a pagar indenização por usar música de Roberto Carlos em campanha, mas recorreu e ganhou em segunda instância Reprodução A decisão do STJ favorável a Tiririca diz que o uso alterado de canção em programa político deve ser considerado “paródia”, e por isso ser isento de autorização e de pagamento de direitos autorais. A defesa de Roberto Carlos recorreu, mas não há nem data prevista para o julgamento do embargo de divergência, que questiona o conceito de paródia no caso. Mercado aquecido “Quando algum cliente fica na dúvida, eu pego e mando o link de notícia sobre o caso do Tiririca para tranquilizar”, diz Geycilene Martins, 39 anos, dona de uma produtora de jingles em Teixeira de Freitas (BA). Ela calcula que 90% de sua produção atual é de versões. O YouTube está lotado de vídeos de demonstração destas produtoras, que oferecem para candidatos a prefeito e vereador a finalização de "paródias" de diversos sucessos. O G1 conversou com seis produtores de jingles que trabalham para candidatos de todas as regiões do Brasil, e eles disseram que: A demanda por versões em jingles, que eles chamam de paródia, aumentou em 2020. Todos comentam a brecha do caso Tiririca como incentivo para o aumento. Elas são mais pedidas para campanhas de vereadores do que de prefeito, e mais para cidades menores que capitais. Mas, em 2020, até grandes campanhas de prefeito estão encomendando jingles de versões. O preço de um jingle varia bastante. Mas, em média, uma faixa “reciclada” custa menos da metade de uma música original. Até a australiana Tones and I tem o hit 'Dance monkey' usado em ofertas de jingles da eleição municipal do Brasil Reprodução 'Promoção’ Além da brecha de “O portão”, há outra vantagem da versão: com a música semipronta, fica mais fácil trabalhar sozinho ou em equipes menores em tempos de pandemia. “O inédito toma muito tempo e fica mais difícil nesse distanciamento social. Tem que juntar a galera. A gente está prezando pelos que já temos produzido”, explica Waldir Lima Gonçalves, 49 anos, que produz jingles em Três Corações (MG). “Um ‘original do zero’ a gente entrega por R$ 1 mil. Para reproduzir uma música nossa que já tenha modelo, a gente cobra R$ 500. E ‘paródia’ agora está por R$ 149. Lembrando que é uma promoção”, anuncia Yago Silva, 26 anos, produtor de Monteiro (PB). Pisadinha com força Barões da Pisadinha Divulgação Um nome que apareceu em todas as conversas com produtores é o dos Barões da Pisadinha. O duo baiano de pisadinha, um forró tocado só no teclado, tem o repertório mais pedido para versões em 2020. “Barões é uma febre. Já fiz pelo menos umas cinco ou seis músicas diferentes deles”, diz Renilson Barros, 36 anos, produtor de jingles de São Paulo. “O que o povo tem pedido muito é a tal da pisadinha. Aqui na Bahia tem também nosso pagode: Léo Santana, Igor Kannário. E nos outros lugares têm os funks, o brega-funk”, acrescenta Gecylene Martins. Os Barões chegam longe. “Embora a gente esteja no Sul, o pessoal tem pedido bastante o piseiro”, diz Giovani Del Mas, 36 anos, de Guaporé (RS). “Mas acabam pedindo mais ritmos do Sul. Normalmente o chamamé [ritmo argentino de origem indígena] e o vanerão”, diz. Produtoras oferecem a produção de 'paródias' dos Barões da Pisadinha para candidatos Reprodução / YouTube ‘Baitaca fogo’ na campanha Foi um ídolo do vanerão gaúcho que teve a reação mais irada contra as paródias até agora, no tal vídeo do Facebook. “Do fundo da grota”, de Baitaca, é um sucesso que passou batido no eixo Rio-SP, mas é fenômeno pelo interior do país. A faixa é campeã de pedidos de jingles na região, conta Claudir Koren, que trabalha há 20 anos em campanhas em Santa Rosa (RS). “Não só aqui como no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, até Rondônia. Tem muita gente que leva o vanerão para cima.” Claudir foi um dos que desistiram de usar “Do fundo da grota”. Mas ele discorda da atitude de Baitaca. “Foi um tiro no pé. O pessoal só faz jingle se a música é boa. Agora todo mundo teve que tirar e ficou contra ele, ‘garrou um ódio’ dele”, critica o produtor. Initial plugin text O G1 procurou Baitaca, que encaminhou mensagens com a mesma opinião do vídeo: para ele, a decisão do STJ sobre Tiririca e Roberto Carlos foi específica, equivocada na sua visão, e não anula seu direito de autorizar ou não o uso de sua própria obra. “O uso da obra em propaganda política visa ‘vender’ um projeto, uma ideia. Neste momento, não temos a homenagem ou sátira, e sim a apropriação de obra de terceiro, para proveito, projeção”, opina o cantor gaúcho. Barões vermelhos de raiva O G1 procurou os Barões da Pisadinha para saber o que acham do uso de suas músicas em jingles. O empresário da dupla, Ordiley Katter Valcari, diz que já havia notado a presença em inúmeros jingles não autorizados e que vai tomar "providências jurídicas cabíveis". "Infelizmente pouquíssimos candidatos nos procuraram para regularizar a situação. Acho que o Tribunal Regional Eleitoral de cada região deve exigir na prestação de conta de cada candidato a autorização do artista para o uso da sua obra", diz. "Pois se na campanha já estão agindo assim, imagine no mandato", critica o empresário. Dúvidas musicais O advogado Sidney Sanches, presidente da comissão de direito autoral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), explica que o direito autoral brasileiro dá espaço à paródia para assegurar liberdade de expressão e o humor no debate público. Por isso, a lei abre uma exceção para a paródia e não exige autorização do autor para estes casos. Mas, para Sidney, a versão de Tiririca não tem o objetivo previsto por essa definição de paródia, e sim o da “capitalização de um interesse pessoal”. Show do cantor Roberto Carlos Natália Clementin/G1 A decisão do STJ não é final e foi só sobre o caso de “O portão”, explica o advogado. “Mas lógico que, tratando-se de quem é, e o precedente que foi, que vai impactar. É um sinal negativo nas eleições para os compositores.” Uma resposta do STJ ao embargo apresentado pela defesa de Roberto Carlos daria segurança em casos semelhantes, mas Sidney diz que é improvável um julgamento antes do pleito de 2020. O brega-funk "Tudo ok" é outro hit entre as produtoras que oferecem paródias no YouTube Reprodução O advogado aponta outro problema: se para a justiça a questão não é clara, as redes sociais, cada vez mais importantes na eleição, podem reconhecer o direito do autor e derrubar versões sem autorização. Em uma campanha cada vez mais digital, pode ficar estranho: “O YouTube pode tirar do ar, seguindo suas políticas. E essa proibição não necessariamente vai se repetir na propaganda de TV e rádio ou no carro de som na rua. Isso é uma preocupação”, diz Sidney. Versões de Anitta também são oferecidas por produtoras de jingles eleitorais Reprodução / YouTube Axé eleitoral Nessa toada incerta, compositores tentam reagir. O baiano Manno Góes, autor de diversos sucessos do carnaval de Salvador e diretor de comunicação da União Brasileira de Compositores (UBC), considera a decisão do STJ “um precedente perigoso, inédito, que não existe em nenhum lugar do mundo”. O problema é antigo, mas ele já se sentiu mais protegido. “Já tive a música ‘Praieiro’ usada por um candidato com sobrenome Guerreiro [palavra presente no hit do Jammil e Uma Noites]. Entrei com ação e ganhei. Depois fizemos um acordo, como deve ser.” Neste ano, ele já teve dois pedidos formais para o uso de “Milla”, outro sucesso de sua autoria. Mas é fácil achar outras versões não autorizadas do sucesso na voz de Netinho vertido em jingle para 2020, prometendo mil e uma noites de amor com o eleitor. O autor da música diz que, mesmo com a decisão sobre Tiririca, não está disposto a deixar o portão aberto. “Se não é autorizada, eu entro na justiça, sim. Tem briga, dá dor de cabeça, mas tem que encarar”, diz Manno.