Em sua encíclica, o Papa Francisco faz um ataque a teorias conservadoras de economia, que ele chama de dogmáticas. Para ele, a ideia de que o mercado resolve tudo é um dogma de fé neoliberal. Divulgação da encíclica Todos Irmãos, do Papa Francisco, no dia 4 de outubro de 2020 Remo Casilli/Reuters O Papa Francisco afirmou neste domingo (4) que a pandemia de Covid-19 é a última crise a provar que as forças de mercado sozinhas não produziram os benefícios sociais que seus proponentes prometeram. Encíclicas são os textos papais mais importantes. Essa tem como tema a fraternidade. Ela cobre assuntos como imigração, a distância entre ricos e pobres, injustiças econômicas e sociais, desequilíbrios na atenção à saúde e o aumento da polarização política em muitos países. O documento foi assinado por Francisco em Assis, na Itália, no sábado (3). Papa Francisco se nega a receber secretário de estado dos EUA O título Todos Irmãos foi criticado por não usar linguagem inclusiva. Em italiano, a palavra "fratelli" significa irmãos, mas, assim como em português, pode ser usada para se referir a um grupo com irmãos e irmãs. De acordo com o Vaticano, o nome da encíclica foi tirado de um texto de São Francisco de Assis escrito no século 13 e não pode ser alterado. Vinicius de Moraes Em um momento do texto, ao falar de como diferentes culturas devem conviver, Francisco, que é argentino, citou o compositor, poeta e diplomata brasileiro Vinicius de Moraes. Ele fez referência à canção Samba da Bênção: "A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida". O contexto era de um incentivo a uma cultura do encontro, em que todos podem aprender algo e na qual ninguém é inútil. "Isto implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes." Críticas à política econômica neoliberal Francisco disse que o direito à propriedade privada não pode ser considerado absoluto em todos os casos, já que há quem viva de forma extravagante e outros que não têm nada. "O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo ambiente", escreveu ele. O Papa atacou diretamente uma ideia do pensamento econômico conhecida pela expressão em inglês "trickle down". Literalmente, significa derramar ou gotejar. Na prática, significa que reduções em impostos para empresas ou pessoas ricas beneficiarão a sociedade inteira. Na encíclica, o Papa escreve o seguinte: "O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja". De acordo com a maior autoridade da Igreja, "o neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do 'derrame' ou do 'gotejamento' –sem a nomear– como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social." Ele diz que uma política econômica ativa é indispensável para aumentar os postos de trabalho em vez de os reduzir. "A especulação financeira, tendo a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental, continua a fazer estragos." O mercado não pode cumprir plenamente a própria função econômica, diz ele, sem formas internas de solidariedade e de confiança mútua. "E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar. O fim da história não foi como previsto, tendo as receitas dogmáticas da teoria econômica imperante demonstrado que elas mesmas não são infalíveis." O Papa então cita os efeitos da pandemia de Covid-19: "A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos". Francisco também fez críticas à falta de coordenação entre governos para solucionar problemas da Covid-19: "Quando estava a redigir esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia do Covid-19 que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos".