Atração do festival 'In-Edit 2020', o falso documentário constrói narrativa inventiva sobre artista que teria inspirado Chico Buarque na composição de 'Pedro pedreiro'. O ator Luís Felipe interpreta Porfírio do Amaral na encenação de 'entrevista' concedida em 1971 a Fernando Faro Reprodução / Vídeo Resenha de documentário musical Título: Porfírio do Amaral – A verdade sobre o samba Direção: Caio Rubens Cotação: * * * * * ♪ Filme em exibição online no 12º In-Edit Brasil – Festival internacional do documentário musical até 20 de setembro. ♪ “No fundo, todo mundo é um náufrago que não enxerga o horizonte”, conclui Porfírio do Amaral (3 de março de 1917 – 2 de abril de 2008) ao fim de entrevista concedida a Fernando Faro (1927 – 2016) em 1971 para o programa de TV Ensaio. A entrevista com esse obscuro compositor baiano nunca foi exibida. Simplesmente porque nunca foi feita. E porque Porfírio do Amaral nunca existiu. Toda a narrativa construída no documentário Porfírio do Amaral – A verdade sobre o samba, em exibição até 20 de setembro na 12ª edição do festival In-Edit Brasil, é fictícia. E esse maravilhoso falso documentário chega ao requinte de explicar, na voz de Chico Buarque, que a razão para o arquivamento da entrevista seria o fato de Porfírio ter gaguejado ao cantar os sambas que compôs a partir dos anos 1930. De acordo com a narrativa fictícia, Porfírio do Amaral era gago, mas somente quando cantava. Por essa razão, a entrevista teria sido cancelada e contribuído para que o sambista ficasse oculto na história da música brasileira. Alguns sambas da obra do compositor – evidentemente tão desconhecida pelo Brasil quanto a existência do criador dessa obra – são apresentados no filme nas vozes de intérpretes como Gloria Bomfim e Josyara em números musicais captados pelas câmeras de Caio Rubens. Os sambas são reais, mas são da autoria do produtor musical do filme, Toni Duarte, em parceria com Reinofy Duarte. O documentário é excelente porque, ao desvendar o 'mistério' do samba de Porfírio do Amaral, permite ao mesmo tempo que o espectador vislumbre o rico horizonte existencial do compositor fictício ao encenar trechos da entrevista biográfica que teria sido concedida pelo artista a Fernando Faro. O enredo é perfeito. Fosse verídico, tudo faria sentido. A recuperação da fita com a entrevista legitimaria tudo que é dito no filme sobre Porfírio porque ele próprio, Porfírio, teria dito muito sobre ele mesmo ao se deixar revelar pela lente de Fernando Faro em 1971, quando tinha 55 anos. Todos os entrevistados entram no jogo de cena. Caracterizado por Mateus Aleluia como “grande sensitivo poético musical”, o artista é documentado pelo cineasta Caio Rubens com base em inventada pesquisa histórica feita por Guilherme Stadler para livro (inexistente) intitulado Porfírio do Amaral – A verdade sobre o samba, nome reproduzido no título do filme. O ator Luís Felipe interpreta Porfírio do Amaral no falso documentário de Caio Rubens Reprodução / Vídeo Ao longo dos 83 minutos do documentário, a narrativa jamais perde o fio condutor. Tanto o compositor quantos os entrevistados – Carlinhos Brown, Elza Soares, Margareth Menezes, Roberto Mendes e Roque Ferreira, entre outros nomes, além dos já citados Chico Buarque e Mateus Aleluia – enfatizam, com maior ou menor clareza, que o samba de Porfírio do Amaral seria filho da dor. Da dor ancestral transportada da África para o Brasil nos navios negreiros que cruzaram o Atlântico (“A dor do samba foi originada de uma tristeza que a gente nem sabe de onde vem”, filosofa Porfírio) e, no caso específico desse compositor da Bahia, de profunda dor de amor que, desfeito em 1940, ainda feria a alma do sambista naquele ano de 1971. Como rememora o ator Luís Felipe, intérprete de Porfírio na encenação da falsa entrevista, a primeira mulher do compositor, Consuelo, desfez a união para viver com outra mulher, Manuela. A desilusão inspirou sambas como Manuela (1940), dirigido com raiva à rival. “A criação vem da dor. Não tem criação sem dor”, sentencia Roberto Mendes. Na obra de Porfírio do Amaral, a dor às vezes foi diluída com o dengo baiano, tempero de Gabriela (1935), samba que abre o filme, encerrado com a interpretação de Tabuleiro da vida (1979) no canto vivaz de Aloísio Menezes. Entre um samba e outro, o espectador sabe que Porfírio trabalhou em salina no Rio Grande do Norte e em pedreira em São Luís do Maranhão, durando pouco nesses empregos. Os trechos da 'entrevista' com Faro revelam homem inteligente, de temperamento e ideologia fortes, com consciência social e política, além de aguçada percepção da própria importância e limitação nos horizontes do mundo. “Nunca toquei nada direito. Nem a minha vida eu toquei direito”, inventaria Porfírio, sem fazer tipo ou gênero diante das câmeras do diretor Fernando Faro. Porque se trata de personagem. E o fato é que, a julgar pela amostragem de sambas como Nos braços da Aurora (1946) e Samba de coco (1951), Porfírio fez – ou melhor, os verdadeiros compositores das músicas – samba direito. E, na construção da narrativa, um desses sambas – Pedra de cantaria (musicado, na verdade, por Chico Brown) sobre pedreiro saudoso da mulher que via passar pela rua – teria reverberado na criação poética de Pedro pedreiro (1965) por Chico Buarque em eco que Chico, entrando no jogo de cena, caracteriza como “influência inconsciente” em depoimento para o filme em que revela ter ouvido no rádio o samba do colega baiano e de ter sido alertado por Fernando Faro sobre a influência embutida em Pedro pedreiro. Enfim, em filme inventivo, Caio Rubens traz à tona o samba do náufrago Porfírio de Amaral ao mesmo tempo em que aponta a beleza do horizonte existencial desse até então obscuro compositor que, na verdade, nunca existiu. Nem tudo é verdade!