Em cartaz na 12ª edição do 'In-Edit Brasil', filme norte-americano foca o músico fundador do inovador grupo carioca Abolição. Resenha de documentário musical Título: Dom Salvador and Abolition Direção: Artur Ratton e Lilka Hara Roteiro: Mikael Awake Cotação: * * * * ♪ Filme em exibição online no 12º In-Edit Brasil – Festival internacional do documentário musical até 20 de setembro. ♪ “Sei o que eu passei na minha terra porque era negro”, confidencia Dom Salvador quase ao fim do documentário norte-americano em que os cineastas Artur Ratton e Lilka Hara historiam a música libertária desse pianista, arranjador e compositor de 82 anos, completados no sábado, 12 de setembro. Para uma personalidade reservada como a de Salvador da Silva Filho, essa declaração diz muito e, de certa forma, explica o fato sintomático de o documentário Dom Salvador and Abolition – em cartaz até 20 de setembro na 12ª edição do festival In-Edit Brasil – ter sido produzido nos Estados Unidos. Residente em Nova York (EUA) desde 1973, Dom Salvador é celebrado nesse filme pela inovação de ter adicionado soul e funk ao samba-jazz quando fundou em 1970 o grupo Abolição após lançar álbum solo em 1969, disco cultuado com o decorrer do tempo. Atuante até 1972, o grupo Abolição apresentou som libertário feito somente por músicos negros em movimento vanguardista que atiçou preconceitos da sociedade, inclusive pelo visual afro dos integrantes. “A gente era parado todo dia”, denuncia o guitarrista José Carlos, ao recordar as intervenções policiais nas ruas. Nascido em 12 de setembro de 1938, no município paulista de Rio Claro (SP), Salvador é de família grande pobre que teve que se cotizar para comprar um piano para o jovem que, desde cedo, demonstrou ter o dom da música. O tempo comprovou o dom extraordinário desse músico notabilizado pelo suingue percussivo do toque do piano. Ainda que o grupo Abolição tenha justificado destaque no roteiro de Mikael Awake, o documentário está focado sobretudo na trajetória individual de Dom Salvador, que, antes de criar o Abolição, integrou em 1965 com o baixista Sérgio Barrozo e o baterista Edison Machado (1934 – 1990) o Rio 65 Trio, importante grupo de samba-jazz. Com Duduka da Fonseca no posto de Edison Machado, o cinquentenário desse trio carioca foi celebrado em 2015 por Salvador em show apresentado no Carnegie Hall – nobre palco de Nova York (EUA) ambicionado pelo pianista – e eternizado em álbum ao vivo cuja capa expõe foto em que o músico se orgulha de parecer um negro africano, como diz no filme. Antes do Rio 65 Trio, Salvador integrara em 1962 o conjunto de sambalanço (com toque de twist) Oliveira e seus Black Boys, criado pelo saxofonista paulista Antonio Oliveira de Souza somente com músicos negros. Elogios à musicalidade singular do pianista – que contribuiu para a efervescência musical do Beco das Garrafas ao tocar nessas boates do bairro carioca de Copacabana – são recorrentes no roteiro reverente de Dom Salvador and Abolition. “É um grande músico com toque de gênio”, atesta Harry Belafonte, músico norte-americano com o qual Salvador tocou. “Ele é pura música”, resume o proprietário do The River Café, casa do Brooklyn (NY) em que Dom Salvador toca desde a inauguração em 1977, em depoimento corroborado pela cena em que o pianista detecta música no frigir da comida que frita no óleo. “Além de grande pianista, ele é muito bom compositor”, atesta Ed Motta, admirador do músico que homenageou no tema Um dom pra Salvador (2002). Enquanto historiam o legado do pianista através do encadeamento de falas de entrevistados como Elza Soares e Tony Tornado (equivocado ao creditar a 1973 o primeiro álbum de Tim Maia – lançado em 1970 – para reforçar o pioneirismo do grupo Abolição na criação do soul brasileiro), os diretores deixam entrever nas entrelinhas o ser humano por trás do músico. O fim abrupto do grupo Abolição é apontado como fato sem explicação no filme, por exemplo, mas sabe-se que, exigente e disciplinado, Dom Salvador ficou desiludido com o apego de alguns músicos do grupo ao álcool e às drogas. A fala em que o pianista revela que proibiu a mulher Mariá (1950 – 2020) de cantar com outros artistas – “Só deixei ela cantar comigo” – revela traço machista no comportamento do artista. Em contrapartida, são comoventes os cuidados de Salvador com Mariá, diagnosticada com demência em 2004 e ainda viva quando o pianista se deixou enfocar pelas câmeras de Artur Ratton e Lilka Hara em série de takes em locações de Nova York (EUA), inclusive na casa do pianista. A devoção de Salvador a Mariá foi exercitada sem que a música jamais tenha deixado de ocupar o primeiro plano da vida do pianista, como revela um dos filhos do artista. Até por isso, por mostrar pouco do homem e muito do músico, o documentário Dom Salvador and Abolition permanece no tom ditado pelo extraordinário artista.