Capa do álbum 'Suíte Leopoldina', de Guinga Reprodução ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Suíte Leopoldina, Guinga, 1999 ♪ O título do quarto álbum de Guinga, Suíte Leopoldina, remeteu à alma musical carioca deste cantor, compositor e violonista nascido em 10 de junho de 1950 no Rio de Janeiro (RJ), cidade que mapeia alguns dos muitos caminhos trilhados pelo artista na criação do extraordinário cancioneiro autoral, sobretudo na obra delirante composta com o conterrâneo Aldir Blanc (1946 – 2020). Foi a reboque da parceria com Aldir Blanc, a propósito, que o carioca Carlos Althier de Souza Lemos Escobar ganhou projeção a partir de 1991, ano do primeiro álbum do artista, Simples e absurdo, editado pela mesma gravadora Velas que pôs Suíte Leopoldina no mercado fonográfico em maio de 1999. Em 1991, quando já contabilizava 41 anos de vida, Guinga deixou de ser segredo conhecido somente por ouvidos antenados do meio musical carioca. O segredo foi desvendado em tempo de entronizar Guinga no panteão dos imortais da MPB, mas ficara muito tempo guardado. Afinal, o artista entrara em cena bem mais cedo, aos 17 anos, precisamente em 1967, quando classificou a música Sou só solidão – letrada pelo efêmero parceiro Paulo Faya – na segunda edição do Festival Internacional da Canção (FIC). Na época desse festival, o precoce artista já se exercitava na arte da composição há quatro anos, tendo feito a primeira música aos 13. Contudo, a trajetória profissional do futuro dentista seria iniciada somente em 1970 como músico acompanhante de Alaíde Costa ao violão, instrumento que aprendera a tocar aos 11 anos. No embalo do trabalho com a cantora, Guinga abriu parceria com Paulo César Pinheiro, construindo obra que veio a público – sem repercussão entre público e crítica – em 1974, ano em que a cantora Clara Nunes (1942 – 1983) enfiou Punhal no álbum Alvorecer (1974) e que o grupo MPB4 deu vozes a duas músicas do compositor debutante em disco, Conversa com o coração e Maldição de Ravel, no álbum Palhaços & reis (1974). A conexão com Pinheiro cairia nos anos 1980, década em que Guinga abriu a parceria com Aldir Blanc, iniciada em 1988. Mote dos álbuns Simples e absurdo (1991) e Delírio carioca (1993), a obra com Aldir deixou de ser dominante na discografia posterior de Guinga. Antecedido pelo álbum instrumental Cheio de dedos (1996), disco em que o artista evidenciou sobretudo os dotes no manuseio do violão, o álbum Suíte Leopoldina alinhou três títulos da parceria de Guinga com Aldir entre as 14 músicas do repertório inteiramente autoral. Do cancioneiro com Aldir, Guinga mostrou Choro perdido (com a assinatura adicional de Mariana Blanc, mas sem a letra, abolida no registro instrumental), apresentou na voz de Lenine o inédito Mingus samba – cujo título fez referência ao contrabaixista norte-americano de jazz Charles Mingus (1922 – 1979), gigante do gênero – e refez Chá de panela (1996), baião lançado na voz de Leila Pinheiro há três anos em Catavento & girassol (1996), álbum dedicado pela cantora à parceria surrealista dos compositores cariocas. Única música já conhecida do repertório essencialmente inédito, Chá de panela foi temperado com a eletricidade nordestina de Alceu Valença, cujo canto ecoou Jackson do Pandeiro (1919 – 1982) e Luiz Gonzaga (1912 – 1980) na regravação deste tema em que Guinga saudou a inventividade de Hermeto Pascoal através da letra de Aldir e por meio do arranjo. Produzido por Paulinho Albuquerque (1942 – 2006), entusiasmado avalista da obra de Guinga, com classudos arranjos de músicos como os pianistas Gilson Peranzzetta e Leandro Braga, o álbum Suíte Leopoldina alinhou convidados ilustres – Chico Buarque, Ed Motta, Ivan Lins, Lenine, Nei Lopes e o gaitista belga Toots Thielemans (1922 – 2016), além do já mencionado Alceu Valença – ao longo das 14 músicas, como exposto na capa em que o anfitrião apareceu em foto tirada na Estação Barão de Mauá, a popular Leopoldina, aglutinador ponto ferroviário do centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Disco que abriu frentes e parcerias na obra de Guinga, Suíte Leopoldina trouxe Toots Thielemans em Dos anjos e Constance, valsas líricas alocadas no início e no fim do álbum, respectivamente. Ed Motta fez ótimo uso do fascínio pela sofisticação da canção a norte-americana – e pela própria música de Guinga, de quem é declarado entusiasta – ao registrar os encorpados vocalizes do fox sem letra Par constante (Guinga). Chico Buarque e Nei Lopes caíram juntos no samba Parsifal. Com letra de Lopes, bamba conhecedor dos engenhos dos versos e do subúrbio carioca, o samba Parsifal exemplificou a heterodoxia que sempre pautou o cancioneiro inventivo de Guinga, cuja obra é resultado do amálgama de influências que vão do inovador compositor francês Claude Debussy (1862 – 1918) a Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), passando por Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), por Duke Ellington (1899 – 1924) e por Radamés Gnattali (1906 – 1988), inspirador da fragrância vintage do Perfume de Radamés (Guinga), um dos nove temas instrumentais do disco. Em Suíte Leopoldina, Guinga abriu parceria com Mauro Aguiar na moda de viola Guia de cego, cantada com Ivan Lins em arranjo cheio de cordas. Entranhada no disco, a alma do subúrbio carioca foi reanimada em autorais choros instrumentais como Di Menor (com a cadência do samba em algumas passagens do arranjo), Dissimulado, Noturno Leopoldina e Sargento Escobar (de tom mais lírico e seresteiro), confirmando a estupenda habilidade de Guinga para revolver tradições musicais com frescor e sopros de modernidade em sequências inusitadas de acordes. Esses choros eram movimentos da Suíte Leopoldina, composta por Guinga para violão e desmembrada no disco. Fora da geografia carioca, o dom da modernidade foi reiterado pelo compositor no baião Cortando um dobrado, outro tema instrumental deste disco em que Guinga se confirmou genial. Só que o Brasil, genioso, nem sempre valorizou os gênios do país. Após Suíte Leopoldina, o artista gravou no Brasil e para o Brasil outros álbuns de inspiração carioca – como Cine Baronesa (2001), Noturno Copacabana (2003) e Casa de Villa (2007) – antes de encontrar abrigo em selo alemão, por onde lançou discos recentes, casos de Roendopinho (2014), Canção da impermanência (2017) e Guinga invites Gabriele Mirabassi – Passos e assovio (2018). Entretanto, por mais que tenha rodado o mundo, Guinga jamais perdeu de vista o horizonte carioca, ponto de partida de discos monumentais como Suíte Leopoldina.