Capa do álbum 'Festa', de Rosa Passos Christiane Bodini ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Festa, Rosa Passos, 1993 ♪ “Rosa. Passos novos no caminho da gente”. Assim o poeta Aldir Blanc (1946 – 2020), confirmando o dom de ourives das palavras, sintetizou a arte de Rosa Passos ao fim do texto que escreveu para apresentar Festa, terceiro dos 18 álbuns lançados pela cantora, compositora e violonista Rosa Passos entre 1979 e 2018. Exposta na contracapa do CD lançado em 1993 pela gravadora Velas, a síntese de Aldir Blanc soou lapidar para quem entende os caminhos harmônicos seguidos por Rosa Maria Farias Passos, baiana que veio ao mundo em 13 de abril de 1952 em Salvador (BA). Comumente caracterizada como “João Gilberto de saias”, pela bossa do violão e pela destreza com que surfa no ritmo das canções a que dá voz, Rosa Passos de fato tem muito a ver com João Gilberto (1931 – 2019) por reinventar cada música que grava com divisões singulares. Foi influenciada por João, a propósito, que a instrumentista de talento precoce trocou o piano aprendido na infância pelo violão. Mais tarde, o dom de reinventar canções justificou as gravações pela cantora de songbooks de compositores como Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), Ary Barroso (1903 – 1964), Djavan e Dorival Caymmi (1914 – 2008). Contudo, Rosa Passos também é compositora e foi apresentando cancioneiro inteiramente autoral que a artista debutou no mercado fonográfico em 1979 com a edição do álbum Recriação. Com repertório formado por dez músicas de Rosa com o parceiro letrista Fernando de Oliveira, o LP Recriação foi lançado sete anos após a cantora obter o primeiro lugar em festival de Salvador (BA) promovido pela Universidade da Bahia, no qual concorreu com a canção Mutilados. Contudo, como nada aconteceu com o disco Recriação, Rosa Passos interrompeu a carreira. A retomada da trajetória fonográfica foi feita somente nos anos 1990 com a edição do álbum Curare (1991), disco de intérprete. Desde então, a artista gravou álbuns com regularidade e, com a bossa que lhe é característica, teve portas abertas em festivais internacionais e no mercado de jazz dos Estados Unidos, onde gravou disco com o baixista norte-americano de jazz Ron Carter, Entre amigos (2003). Dez anos antes de lançar o álbum feito com Ron Carter, Rosa Passos entrou no estúdio Chorus, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), para gravar em maio de 1993 o álbum Festa, masterizado por Bernie Grundman em Los Angeles, na Califórnia (EUA). Produzido por Paulinho Albuquerque (1942 – 2006), com arranjos divididos entre o violonista Lula Galvão e a própria Rosa Passos, o disco Festa mostrou a sagaz cantora dando voz a músicas autorais – o que não acontecia desde o álbum de estreia Recriação (1979), lançado 14 anos antes. Editado originalmente no formato de CD, o álbum Festa apresentou 12 músicas gravadas pela cantora. Sete eram composições inéditas de autoria de Rosa, sendo seis com o parceiro de primeira hora Fernando de Oliveira, letrista inclusive das duas composições – Dunas (samba que mapeou belezas marítimas da cidade de Salvador) e Juras (bolero sem qualquer resquício de melodrama) – que sobressaíram na safra autoral do álbum Festa. A exceção foi Causa perdida, samba-canção que abriu a parceria de Rosa com Aldir Blanc, autor de versos como “O meu amor vive em causas perdidas / Sabe as datas vencidas / Dos bens que não resgatei”. Aldir também se fez presente na ficha técnica como parceiro de Moacyr Luz no então inédito samba Paris: de Santos Dumont aos travestis (1993). Fernando de Oliveira temperou o samba Salada tropical com a pimenta de versos (“Cansei de novidades duvidosas / E quero repetir o bê-a-bá / … / Ouvindo os velhos discos do Joãozinho”) que criticavam ondas musicais que se erguiam no mar da Bahia em movimento orquestrado pela indústria do disco. Já o tempero do samba-título Festa (Rosa Passos e Fernando de Oliveira, 1993) foi a salsa cubana, evocada pelo sopro latino do trompete de Marcio Montarroyos (1948 – 2007). Se Chuva de verão (Rosa Passos e Fernando de Oliveira, 1993) caiu em Festa com ecos da influência da obra de João Bosco no cancioneiro da compositora, o bolero Outono (Rosa Passos e Fernando de Oliveira, 1993) mostrou que, em qualquer estação, o violão de Rosa Passos descende do violão de João Gilberto. Como intérprete, Rosa Passos caiu com bossa em samba obscuro de Djavan – De flor em flor (1983), lançado dez anos por Gal Costa e nunca gravado pelo autor – e seguiu a rota melancólica de Candeias (Edu Lobo, 1967) com a devida delicadeza dos toques do violão de Lula Galvão, do piano de Itamar Assiere e do baixo de Jorge Helder em gravação com passagem instrumental de clima jazzy. Com o baticum suave dos tamborins de Ovídio Brito (1945 – 2010) e Pirulito, a lembrança do samba Feitiço da Vila (Noel Rosa e Vadico, 1934) exemplificou a habilidade de Rosa Passos para dividir música alheia com personalidade que sempre a afastou da seara do cover. Valorizada pelos sopro do sax de Idriss Buodrioua e adornada com citação de Summer of '42 (1971), tema do pianista Michel Legrand (1932 – 2019), a gravação da canção O amor em paz (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1960) encerrou Festa no refinado tom sereno da música de Rosa Passos com interpretação que deu sentido à sentença poética com que Aldir Blanc saudou a artista no texto da contracapa do disco: “Nada como ser Rosa na vida”.