Capa do álbum 'Prato e faca', de Cristina Buarque Reprodução ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Prato e faca, Cristina Buarque, 1976 ♪ Ao explicar o título do segundo álbum de Cristina Buarque, Prato e faca, Fernando Faro (1927 – 2016) discorreu poeticamente sobre esses dois instrumentos recorrentes desde o século XIX no universo do samba – em especial nas rodas armadas no Recôncavo Baiano – em texto publicado na contracapa do LP lançado em 1976 pela gravadora RCA-Victor. “Nenhum outro dos nossos instrumentos, ao que sabemos, tem nome tão significativo. Ele vincula a cozinha, a fome, o comer ao cantar, ao dançar e tocar. Ele arredonda o mundo. Ele aproxima as coisas da sua realidade. Assim, não pode ter mesmo outro nome este LP que não Prato e faca. Era essa a ideia”, resumiu Faro, produtor deste grande disco de Cristina. Sim, antes de incorporar o sobrenome famoso à identidade artística a partir do álbum gravado com Henrique Cazes e lançado em 1995 com músicas do compositor Noel Rosa (1910 – 1937), Maria Christina Buarque de Hollanda se apresentava somente como Cristina. Foi assim que essa cantora carioca – nascida em 23 de dezembro de 1950 – lançara em 1974 o primeiro álbum, intitulado justamente Cristina e apresentado sete anos após a artista ter debutado no mercado fonográfico como convidada do compositor paulista Paulo Vanzolini (1924 – 2013) no álbum Onze sambas e uma capoeira (1967), do qual participou como intérprete do samba Chorava no meio da rua, de Vanzolini. No rastro dessa estreia, Cristina dividiu com Chico Buarque a interpretação do samba-canção Sem fantasia (1968), apresentado pelo cantor e compositor no terceiro álbum. Irmã mais nova de Chico, Cristina Buarque jamais se escorou no prestígio do mano famoso. Até porque, logo na década de 1970, Cristina cavou o próprio prestígio nas raízes do samba por ser, além de cantora, dedicada pesquisadora que se fez respeitar por ter sido fundamental para a difusão de obras então obscuras de compositores egressos dos quintais e terreiros mais nobres do samba carioca. Foi na voz – tão pequena quanto devotada e inteligente – de Cristina que, em 1974, o público realmente conheceu o samba Quantas lágrimas (1970), obra-prima do cancioneiro do compositor Manacéa (1921 – 1995). Talvez por conectar o álbum Prato e faca ao maior sucesso do disco de estreia, Cristina abriu o LP de 1976 com outro samba de Manacéa, Sempre teu amor (1963), composição com o DNA aristocrático do bamba da Portela. No registro de Sempre teu amor feito por Cristina com as participações de Manacéa e Monarco (nos breques), o prato e a faca percutidos pelo ritmista Luna se fizeram ouvir com clareza no arranjo, justificando de cara o título do álbum gravado no estúdio A da gravadora RCA, na cidade de São Paulo (SP), com arranjos do pianista José Briamonte. A propósito, o piano de Briamonte sobressaiu na gravação de Resignação (Geraldo Pereira e Arnô Provenzano, 1943), samba então já obscuro, lançado há 33 pela cantora fluminense Odete Amaral (1917 – 1984) e revivido por Cristina com dose exata de melancolia. A mesma melancolia foi entranhada com igual precisão no canto de Dei-te liberdade (1976), samba dolente e então inédito de autoria de Dona Ivone Lara (1922 – 2016) que permaneceu esquecido no álbum Prato e faca sem nunca ter merecido outro registro fonográfico, nem mesmo da compositora. A rigor, o prato e a faca realçados no título do disco apareceram somente em duas das 12 faixas do álbum, marcando o ritmo no já mencionado samba Sempre teu amor que abriu o LP e no samba que fechou o disco, Esta melodia (Bubu da Portela e Jamelão, 1959) – e aqui cabe lembrar que foi deste álbum de Cristina Buarque que Marisa Monte pescou a pérola lançada em disco pelo cantor Jamelão (1913 – 2008) para o Verde, anil, amarelo e cor-de-rosa e carvão (1994). Na maior parte das faixas do disco, o ritmo foi ditado pelos percussionistas Elizeu Félix, Jorginho do Pandeiro (1930 – 2017), Mestre Marçal 1930 – 1994) e pelo baterista Milton Banana (1935 – 1999). Ainda assim, o título Prato e faca fez todo sentido porque estes instrumentos também estão enraizados no samba carioca, cultuado nos terreiros do centro do Rio de Janeiro (RJ) no início do século XX por bambas pioneiros como João Machado Guedes (1887 – 1974), o João da Baiana, a quem Cristina dedicou a gravação de Esta melodia. Com músicos do naipe do cavaquinista Bernardo Cascarelli Jr. (o Xixa), do violonista Horondino José da Silva (1918 – 2006) – o Dino Sete Cordas – e de Abel Ferreira (1915 – 1980), cujo clarinete realçou o tom buliçoso de Amar é um prazer (Zé da Zilda e Antônio Almeida, 1938), samba dos tempos do cantor e compositor Almirante (1908 –1980), o álbum Prato e faca se assentou no terreiro do samba carioca. Foi nesse terreiro que passou Carro de boi (1976) – samba do recorrente Manacéa, regravado no ano seguinte por Beth Carvalho (1946 – 2019) para o álbum Nos botequins da vida (1977) – e que ecoou a decisão de Chega de padecer (1970), samba de outro glorioso bamba portelense, Bonifácio José de Andrade (1918 – 1980), o Mijinha. Reforçando o elo com os compositores da Portela neste disco de 1976, Cristina também deu voz melancólica ao samba Não pode ser verdade (1972) – de autoria de Alberto Lonato (1909 – 1998) – com o mesmo tom dolente imprimido à interpretação de Tua beleza (Raul Marques e Waldemar Silva, 1976). Na abertura do lado B do LP Prato e faca, Cristina Buarque apresentou Abra seus olhos, samba de Paulinho da Viola, gravado pelo autor no mesmo ano no álbum Memórias cantando (1976). Reiterando o dom de pesquisadora, a cantora recuperou Sorrir, samba de 1937, da lavra dos pioneiros Alcebíades Barcelos (1902 – 1975) – o Bide – e Armando Vieira Marçal (1902 – 1947), o Marçal da dupla com Bide. Outra pérola do baú, Sou eu que dou as ordens (1946), samba de Heitor dos Prazeres (1898 – 1966), vinha do repertório de Aracy de Almeida (1914 – 1988). Dona de discografia referencial, pautada pela coerência evidenciada em álbuns posteriores como Arrebém (1978), Vejo amanhecer (1980), Cristina (1981) e Resgate (1994), Maria Christina Buarque de Hollanda completa 70 anos em 2020 com a devida reverência, merecida porque a artista soube se fazer respeitar como grande nome do samba. Os verdadeiros bambas sabem que a voz da cantora irradia ricas tradições que englobam o prato e a faca.