Capa do álbum 'O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui' Ênio Cesar ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, Emicida, 2013 ♪ “No final das contas, a única coisa que vale a pena ter aos milhões são os sonhos / … / No final das contas, tudo é ubuntu (fristaili), que significa 'eu sou porque nós somos' ”. A primeira e a última frases do texto escrito por Emicida para a contracapa externa da edição em CD do primeiro álbum do artista – O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, gravado com produção musical de Felipe Vassão e lançado em 2013 pela gravadora do próprio Emicida, Laboratório Fantasma – sintetizam o sentido de transcendência e coletividade que vem pautando a existência de Leandro Roque de Oliveira. As palavras do rapper paulistano – nascido em 17 de agosto de 1985 e criado no Jardim Fontális, violento bairro da periferia da cidade de São Paulo (SP) – soaram mais do que pura retórica para quem conhecia a trajetória desse MC que, há apenas quatro anos, lançara em 2009 a primeira gravação. Foi uma mixtape, cujo título Pra quem já mordeu um cachorro por comida até que eu cheguei longe pareceu mais do que figura de linguagem aos ouvidos de quem conhecia a dura realidade das quebradas paulistanas de onde veio Emicida. Embora formado em desenho pela Escola Arte São Paulo, Emicida traçou outro destino quando começou a escrever raps e a enfrentar MCs nas batalhas travadas nas ruas de Sampa. O nome artístico Emicida, aliás, foi a reprodução do apelido recebido por volta de 2005 pelo rapper então iniciante por sempre liquidar o concorrente nessas batalhas, trampolins para a escalada social de jovens pobres egressos da periferia paulistana. Foi ali, em criativa união das palavras MC e homicida, que Leandro virou para sempre Emicida aos olhos dos concorrentes das batalhas e, no decorrer dos anos 2010, aos olhos e ouvidos de todo o Brasil. Pela aguçada consciência social que o faz denunciar o racismo entranhado no país, Emicida se tornou um pensador relevante no Brasil de 2020. Um pensador que, mesmo quando faz rimas com o já notório dom do improviso, joga bem com as palavras nas entrevistas em que expõe fraturas sociais de país corroído por esse racismo e pela profunda desigualdade que confina os pobres em guetos. “Nóiz sempre vai ser gueto”, rimou Emicida em música do álbum O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui gravada com a adesão de MC Guimê. Quando vislumbrava a eternidade do gueto, Emicida apontava a união entre a própria classe, tema de Nóiz (Emicida e Felipe Vassão), rap gravado com o sentimento de irmandade que pautou o discurso ampliado e amadurecido pelo rapper neste disco de 2013, lançado cinco anos após a edição do primeiro single do artista, Triunfo (2008). Ponto de mutação em discografia desenvolvida até então com o EP Sua mina ouve meu rep também (2010), a mixtape Emicídio (2011) e o EP Doozicabraba e a revolução silenciosa (2012), e que renderia até 2020 mais dois primorosos álbuns de estúdio com músicas inéditas, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa (2015) e AmarElo (2019), o disco O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui evidenciou o talento de Emicida para construir discurso elaborado com doses bem calculadas de politização e lirismo. Sem a marra (também necessária) do grupo de rap Racionais MC's, Emicida se tornou o principal expoente da geração 2010 em que também se destacaram Criolo – conterrâneo paulistano com quem Emicida gravou álbum ao vivo e DVD lançados em 2013 – e, mais recentemente, o rapper mineiro Djonga. Ao longo de 14 faixas de disco aberto com o poema Milionários do sonho (Elisa Lucinda), Emicida inventariou glórias e tensões da trajetória das rinhas do gueto do hip hop para a fama nacional – caminhada vitoriosa que o artista celebraria e sintetizaria no DVD 10 anos de triunfo (2018). No álbum O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, Emicida louvou o gueto ao mesmo tempo em que tentou derrubar cada vez mais as fronteiras desse nicho. Inclusive as musicais. A propagação da sombria faixa Zoião (Emicida, Felipe Vassão e DJ Zala) na trilha sonora da novela Sangue bom (TV Globo, 2013) foi indício de que o discurso do rapper já começava a ecoar muito além do gueto. A presença de Pitty em Hoje cedo (Emicida e Felipe Vassão), faixa de vibe mais pop, corroborou a intenção do MC de fazer o discurso reverberar em outros territórios, inclusive na seara do rock. Em tempo de maior delicadeza, Sol de giz de cera (Emicida e Felipe Vassão) se abriu no disco com os vocais de Tulipa ruiz e de Estela Virgílio, filha de Emicida. Já a mãe do artista, Dona Jacira, entrou na roda de samba armada em Crisântemo (Emicida, Dona Jacira e Felipe Vassão), faixa em que desabrochou a azeitada mistura de samba e rap que o MC refinaria ainda mais no posterior álbum AmarElo. Ainda dentro da roda, Samba do fim do mundo (Emicida e Felipe Vassão) avisou que é preciso estar atento e forte. Já Alma gêmea (Emicida e Felipe Vassão) poetizou a mulher amada com o charm leve dos bailes da pesada. Essa mesma mulher é menos glorificada no discurso com dor-de-corno de Trepadeira (Emicida e Felipe Vassão), samba cantado por Emicida com o bamba carioca Wilson das Neves (1936 – 2017). E por falar em bambas, Hino vira-lata (Emicida e Beatnick & K-Salaam) caiu no suingue com o toque do Quinteto em Branco e Preto, grupo (desfeito em 2014) que se tornara referência do melhor samba produzido em Sampa. Seja na roda do samba ou na batalha do rap, Emicida sempre apontou o caminho do bem e foi nessa direção que seguiu Bang! (Emicida, Ogi, Rael e Felipe Vassão), rap que exemplificou a tensão motora de disco criado a partir das vivências do artista. No fim do disco, Ubuntu Fristaili (Emicida) reforçou o discurso positivista do rapper com o coro formado por manos e minas como Fabiana Cozza, Juçara Marçal, MC Guimê, Rael, Rashid e Tulipa Ruiz. “Música é nossa religião”, professou Emicida, com a fé que moveu o MC das quebradas para o olimpo reservado aos que vencem no Brasil sem abrir mão dos milhões de sonhos, sintetizados na luta cotidiana por justiça social e igualdade racial.