Capa do álbum 'Ame ou se mande', de Jussara Silveira Sérgio Guerra ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Ame ou se mande, Jussara Silveira, 2011 ♪ No tabuleiro de Jussara Silveira, grande cantora do Brasil, sempre teve saborosos quitutes musicais. Todo mundo pensa que a artista é baiana, e de certa forma ela é mesmo, pois foi criada em Salvador (BA) e traz impressa na discografia a assinatura musical da Bahia, mas, a rigor, Jussara Silveira veio ao mundo em 9 de agosto de 1959 na interiorana cidade mineira de Nanuque (MG). Quando lançou em novembro de 2011 o sétimo álbum, Ame ou se mande, em edição da gravadora Joia Moderna distribuída via Tratore, Jussara Silveira já era respeitada pela discografia pautada pelo canto cristalino dessa intérprete que, em contraste com a alta temperatura da música de Salvador (BA), adotara registro vocal cool, sem os temperos do caldeirão fervente da axé music. Produzido pelo baterista e percussionista Marcelo Costa com o tecladista Sacha Amback, o álbum Ame ou se mande apresentou o registro de estúdio de músicas cantadas por Jussara no show também intitulado Ame ou se mande e estreado em 22 de fevereiro de 2011 na abertura do projeto Tabuleiro da Bahia, armado na cidade do Rio de Janeiro (RJ) pelo Centro Cultural Banco do Brasil. Reapresentado em abril daquele ano de 2011, no pequeno palco do teatro Solar de Botafogo, o show Ame ou se mande embeveceu público pequeno, mas influente, nessa volta à cena carioca. Ciente do frisson, o DJ Zé Pedro – diretor artístico da gravadora Joia Moderna – bancou a gravação e a edição da tiragem inicial de mil cópias do CD Ame ou se mande, já idealizado pela cantora. Formatado em maio de 2011 no estúdio carioca Zaga Music, em gravação feita somente com os toques dos músicos produtores Marcelo Costa (bumbo, caixa, atabaque e caxixi) e Sacha Amback (piano e sintetizador), o álbum chegou às lojas seis meses após a gravação com capa que expôs Jussara Silveira em bela foto de Sérgio Guerra e sem a música-título Ame ou se mande. É que os representantes dos compositores da canção Love or leave me (Walter Donadson e Gus Kahn, 1928) se recusaram a autorizar o registro fonográfico da versão em português desse standard norte-americano de 1928. A versão havia sido escrita para o show Ame ou se mande por Luís Ariston, também letrista da solar canção O dia que passou, assinada por Ariston com Toni Costa e gravada no disco com citação sagaz de Here comes the sun (George Harrison, 1969). A ausência da composição-título no repertório em nada empanou o brilho de Ame ou se mande, álbum coerente com a discografia e com a trajetória profissional de Jussara Silveira. A propósito, a dupla presença de Caetano Veloso no repertório do álbum Ame ou se mande acentuou a sintonia entre disco e cantora. Afinal, oito anos antes de estrear oficialmente como cantora em show apresentado em 1989 no Teatro Castro Alves, palco mais nobre de Salvador (BA), Jussara tinha debutado profissionalmente fazendo coro na gravação de três músicas do álbum Outras palavras (1981), do cantor baiano. Em 1994, os caminhos profissionais de Jussara voltaram a se cruzar com os de Caetano quando ela foi convidada a dar voz à música Dama do cassino (1988) no tributo feminino Elas cantam Caetano Veloso. A gravação de Dama do cassino reverberou, foi parar na trilha sonora do remake da novela Irmãos coragem (TV Globo, 1995) e também no primeiro álbum da cantora, Jussara Silveira, gravado em 1996 e lançado em 1997. Nesse álbum de estreia, Jussara foi saudada pelos críticos por conta da inteligência na seleção de repertório – traço que seria acentuado em discos posteriores – e pela afinação do canto límpido, de técnica lapidada em cursos da Universidade Federal da Bahia e em estudos de canto coral. No álbum Ame ou se mande, essa afinação e emissão exemplares saltaram aos ouvidos logo no registro da música que abriu o disco, A voz do coração (Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, 2001), e ressoaram na regravação de Madre Deus (2005), música composta por Caetano Veloso para a trilha sonora original de balé do Grupo Corpo, Onqotô (2005), assinada pelo compositor baiano com José Miguel Wisnik, autor no disco da canção Tenho dó das estrelas, composta sobre versos do poeta Fernando Pessoa (1888 – 1935). Até então, Madre Deus estava restrita ao disco com a trilha do balé, embora Gal Costa já a tivesse regravado, também naquele ano de 2011, para Recanto, revigorante álbum que lançaria em dezembro, um mês após a edição do disco de Jussara. Nos quitutes degustados por Jussara no tabuleiro do disco Ame ou se mande, Caetano também estava presente implicitamente na lembrança de Marcianita (José Imperatore Marcone e Galvarino Villota Alderete em versão em português de Fernando César, 1960), sucesso do cantor Sérgio Murilo (1941 – 1992) que o cantor baiano tropicalizara em 1968 em gravação com o grupo Os Mutantes e que Jussara Silveira já costumava reviver em shows em número aplaudido pelos seguidores fiéis da artista. Na alta costura do disco Ame ou se mande, Marcianita fez link interplanetário com Contato imediato (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte, 2006), balada que transportou corações apaixonados para galáxias distantes e que abduziu ouvintes com a gravação lapidar de Jussara, feita em clima espacial (sugerido pelos efeitos dos teclados de Sacha Amback), cinco anos após o registro original de Arnaldo Antunes no álbum Qualquer (2006). Sem firulas ou vibratos, o canto preciso de Jussara Silveira ecoou a vivência musical da verdadeira baiana nas gravações de Ifá (Cezar Mendes e José Carlos Capinan) – música então inédita que evocou a leveza da bossa nova – e de Doce esperança (Roberto Mendes e J. Velloso, 1991), composição apresentada no primeiro álbum solo de Daniela Mercury e reavivada por Jussara com o baticum de Marcelo Costa. O batuque também embasou o samba Bom (André Carvalho e Qinho, 2010), única música do disco que não veio do roteiro do show Ame ou se mande. Com personalidade, Jussara conciliou harmonizar no álbum as rimas de Babylon (Zeca Baleiro, 2000) – no primeiro e por ora único registro fonográfico da canção sem a presença do autor – e a filosofia hippie da música Dê um rolê (Moraes Moreira e Luiz Galvão, 1971), hino da contracultura do Brasil dos anos 1970 incluído no roteiro do show (era o gran finale) e no repertório do disco como ato de coragem. A coragem vinha do fato de que sempre foram detectados ecos e influências do canto cristalino de Gal Costa na voz que sai do coração de Jussara Silveira – cantora que, como Gal, também dedicou disco ao cancioneiro do compositor Dorival Caymmi (1914 – 2008), Canções de Caymmi. O songbook de Caymmi foi editado em 1998 com o mesmo requinte que seria reprisado por Jussara Silveira em álbuns posteriores da mineia mais baiana do Brasil, casos de Jussara (2002), Entre o amor e o mar (2006), Nobreza (disco com o violonista Luiz Brasil, também editado em 2006), Fruta gogoia (2017) – disco com Renato Braz em homenagem à referencial Gal – e este memorável Ame ou se mande.