Capa do álbum 'Dick Farney na Broadway', de Dick Farney Reprodução ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Dick Farney na Broadway, Dick Farney, 1954 ♪ O primeiro sopro de modernidade na música brasileira, a mola que propulsou João Gilberto (1931 – 2019) a ir atrás de uma bossa que era nova até para ele, veio em 1946 da voz macia de Dick Farney. Em 1946, com a gravação original do samba-canção Copacabana (João de Barro e Alberto Ribeiro), o cantor carioca mostrou que o gênero poderia abrir mão do melodrama para embalar o ouvinte em tons suaves e quase coloquiais que contrastavam com a grandiloquência vocal das estrelas da era do rádio. Dorival Caymmi (1914 – 2008) – moderno desde antes de chegar à cidade do Rio de Janeiro (RJ), vindo da Bahia – foi nessa onda que se ergueu à beira-mar, na intimidade das boates e clubes da borbulhante noite carioca, e cedeu o samba-canção Marina (1947) para Dick Farney. Na certidão de nascimento, Dick Farney era Farnésio Dutra e Silva (14 de novembro de 1921 – 4 de agosto de 1987), cantor e pianista que já mostrara intimidade com o jazz. Pianista de formação clássica, Farney se encantara desde cedo pela canção norte-americana e, com farta bagagem musical, atípica para instrumentistas adolescentes, o artista começou a tocar profissionalmente em discos e programas de rádio a partir de 1937. Pianista da orquestra do lendário Cassino da Urca de 1941 a 1944, ano em que debutou como cantor no mercado fonográfico com as edições sequenciais de quatro singles de 78 rotações por minuto, Farney tinha tanto apego ao jazz e à canção norte-americana que decidiu “fazer a América”, como dizia a gíria da época, e partiu para os Estados Unidos. Foi para lá em 1946, voltou logo para o Brasil e, no ano seguinte, foi de novo para os EUA, onde desembarcou em Manhattan, epicentro de Nova York, em 1º de março de 1947 – como informou o crítico musical Sylvio Túlio Cardoso (1924 – 1967) no texto que escreveu para a contracapa de Dick Farney na Broadway, primeiro álbum do cantor no Brasil. LP de 10 polegadas editado pela Sinter (Sociedade Interamericana de Representações), gravadora fundada no Brasil em 1945 que passaria a se chamar CBD (Companhia Brasileira de Discos) em 1955, Dick Farney na Broadway apresentou ao mercado nacional oito músicas registradas pelo cantor em 1947 para a gravadora norte-americana Majestic, com a qual o artista carioca assinara contrato com as bençãos da emissora de rádio NBC, cujo elenco já contava com o nome de Dick Farney – o que explica a foto do cantor ao microfone da NBC na capa do LP. Das oito músicas do álbum, seis era canções norte-americanas interpretadas pelo cantor com a fluência do inglês desse artista que desde sempre dominou tanto a língua quanto o idioma musical norte-americano. As outras duas eram os sambas-canção Copacabana e Marina, reapresentados no LP Dick Farney na Broadway em versões bilíngues que, às respectivas letras originais em português, acrescentaram versos em inglês escritos por Jack Lawrence (1912 – 2009) e Al Stillman (1901 – 1979), respectivamente. Lawrence – para quem não liga o nome à música – foi também letrista de Tenderly, standard norte-americano que Farney teve a primazia de gravar em 15 de junho de 1947 e lançar em julho daquele mesmo ano. O cantor apresentou Tenderly ao mundo no mês em que a cantora Sarah Vaughan (1924 – 1990) gravou essa parceria de Lawrence com Walter Gross (1909 – 1967), autor da melodia composta em 1946 que teria sido apresentada a Farney em primeira mão no estúdio, de acordo com o relato de Sylvio Túlio Cardoso na contracapa do LP de 10 polegadas. Retrato tardio do sucesso de Dick Farney nos Estados Unidos, país onde o cantor chamou atenção da mídia na segunda metade dos anos 1940, esse álbum de 1954 flagrou o cantor na companhia da orquestra do compositor e maestro norte-americano Paul Baron (1910 – 1985). Barou criou arranjos por vezes expansivos que dissolveram a aura de intimidade que dava charme ao samba-canção Copacabana, por exemplo. A gravação de Marina começou em tonalidade íntima, mas a orquestra se agigantou quando o cantor deu voz aos versos em inglês dessa versão bilíngue. Ainda assim, a maciez do canto à meia-luz de Dick Farney acariciou os ouvintes no registro original de Tenderly. Gravações como a da balada There's no sweeter word than sweeheart – composição de Teddy Powell (1905 – 1993), sob o pseudônimo de Freddy James, e Jack Little (1899 – 1956) – mostraram Dick Farney à vontade no terreno então dominado por Frank Sinatra (1915 – 1998), cantor norte-americano ao qual o artista carioca foi linkado no Sinatra-Farney Fan Club, fundado em 1949 no Rio de Janeiro (RJ) e ponto de encontro de futuros ícones da bossa nova – João Gilberto e Johnny Alf (1929 e 2010), entre eles – pelo culto ao jazz. Dick Farney, inclusive, frequentava o fã-clube desde a fundação, pois, mesmo indo bem na carreira norte-americana, jamais descuidou do mercado fonográfico brasileiro, para o qual gravou sucessivos discos nos anos em que viveu na ponte Brasil-Estados Unidos até decidir permanecer definitivamente em solo nacional. Uma das joias do álbum Dick Farney na Broadway, a abordagem de For once in your life (Fischer e Figal, 1947) atestou a habilidade do cantor carioca para triunfar no mercado norte-americano – assim como a regravação de How soon (Will I be seeing you) (Jack Owens e Carroll Lucas, 1944). Ao cair no suingue da canção Somebody loves me (George Gershwin, Ballard MacDonald e Buddy DeSylva, 1924), Dick Farney mostrou apurado senso rítmico, qualidade exigida para crooners de orquestras. Já o registro de My melancholy baby (Ernie Burnett e George Norton, 1912) exalou a melancolia anunciada no título da canção, mas sem melodrama, com a modernidade atemporal do canto de Dick Farney. Mesmo após a fase áurea, o cantor levou adiante a discografia, pavimentada no Brasil com álbuns como Meia-noite em Copacabana com Dick Farney (1957), Atendendo a pedidos (1958), Canções para a noite de meu bem (1960), Jazz (1962), Penumbra romance (1971), Dick Farney (1973), Noite (1981) e Feliz da gente (1983), entre muitos outros discos, sendo que alguns foram gravados ao vivo e dois foram divididos nos anos 1970 com a cantora Claudette Soares. Quando morreu, em 1987, a três meses de completar 66 anos, Dick Farney amargava injusto ostracismo, mas já tinha o nome na história por ter vindo da voz desse cantor, em 1946, o sopro de modernidade que anteviu um novo começo de era na música do Brasil.