Natural de Cingapura, Jun Wei Yeo, que se declarou culpado em um tribunal nos EUA, disse que procurava alvos 'insatisfeitos com o trabalho' ou 'em dificuldade financeira'. Jun Wei disse em depoimento que procurava alvos 'insatisfeitos com o trabalho' ou 'em dificuldade financeira' Dickson Yeo/Facebook/BBC Jun Wei Yeo sem dúvida estava animado quando, em 2015, foi convidado para dar uma palestra a estudantes universitários chineses em Pequim. O cingapuriano havia acabado de começar o PhD, e o tema de seu doutorado havia sido a política externa da China — cujas engrenagens, aliás, ele veria em operação com os próprios olhos não muito tempo depois. Após a apresentação, Jun Wei, também conhecido como Dickson, foi, de acordo com documentos judiciais americanos, abordado por um grupo de pessoas que afirmavam trabalhar para um think tank chinês e que lhe disseram que gostariam de contratá-lo para que escrevesse "análises políticas". Mais tarde, eles especificariam do que o trabalho na verdade se tratava: a coleta de informações sigilosas e privilegiadas. Jun Wei percebeu ainda cedo que estava negociando com agentes da inteligência chinesa e, ainda assim, deliberadamente manteve contato com eles, conforme consta em seu depoimento. Durante algum tempo, sua área de "pesquisa" foram os países do sudeste asiático, até que lhe pediram que voltasse suas atenções ao governo americano. Foi assim que Dickson Yeo acabou se tornando um agente chinês — um espião que usaria o LinkedIn, uma página falsa de uma consultoria e a personalidade de um "pesquisador curioso" para ludibriar seus alvos americanos. Cinco anos depois, em julho de 2020, em um cenário de tensão crescente entre Washington e Pequim, ele se declarou culpado em um tribunal americano e confessou ser um "agente ilegal de uma potência estrangeira". A pena de Jun Wei, hoje com 39 anos de idade, pode chegar a 10 anos de prisão. Colegas dele na renomada Escola de Políticas Públicas Lee Kuan Yew, que forma alguns dos mais importantes funcionários do governo de Cingapura, ficaram surpresos ao saber que ele havia sido preso por espionagem. "Ele era um aluno bastante ativo, sempre o vi como uma pessoa muito inteligente", declarou uma ex-aluna de pós-gradução que preferiu não se identificar. Segundo ela, ele falava bastante sobre desigualdade social e sobre o fato de que sua família havia passado por muita dificuldade financeira quando ele era criança. É difícil conciliar essa pessoa com aquela que confessou trabalhar para o governo chinês, diz ela. Um antigo funcionário da faculdade tem, porém, uma visão diferente. Para ele, Jun Wei tinha "uma percepção exagerada de sua própria importância". O orientador do PhD de Jun Wei, Huang Jing, foi expulso de Cingapura em 2017 por ser um "agente de influência de um país estrangeiro" não especificado. O professor, de origem sino-americana, sempre negou as acusações. Depois de deixar o país, ele foi trabalhar nos Estados Unidos, em Washington, e, depois, na China, em Pequim, onde está até hoje. De acordo com os documentos divulgados pela Justiça americana, o então estudante de PhD se encontrou com as pessoas que o haviam recrutado em dezenas de locais diferentes na China. Em uma das reuniões, ele foi incumbido de obter informações sobre o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, sobre inteligência artificial e sobre a guerra comercial entre as duas potências. O ex-secretário permanente do Ministério de Relações Exteriores de Cingapura Bilahari Kausikan disse não ter dúvida de que "Dickson sabia que estava trabalhando para o serviço de inteligência da China". Ele não era um "instrumento involuntário", acrescenta o diplomata. 'Recrutamento' pela rede social Perfil de Dickson Yeo no LinkedIn que foi excluído BBC Jun Wei abordava parte de seus alvos por meio do LinkedIn, a rede social voltada para o relacionamento profissional com mais de 700 milhões de usuários. A plataforma é descrita nos documentos judiciais apenas como "um site para networking profissional", mas o nome foi confirmado pelo jornal "Washington Post". Ex-funcionários do governo, do Exército e empreiteiros costumam compartilhar uma parte relevante de seu trabalho na busca por novas oportunidades profissionais. Isso acaba sendo um prato cheio para agentes de inteligência de outros países. Em 2018, o diretor do Centro Nacional de Contrainteligência e Segurança dos Estados Unidos, William Evanina, alertou que a plataforma — um dos poucos sites ocidentais que não são bloqueados na China — vinha sendo usada pelo país asiático para recrutar espiões. Kevin Mallory, um ex-agente da CIA condenado a 20 anos de prisão no último mês de maio após vazar documentos militares secretos a um agente chinês, foi abordado pelo LinkedIn. Em 2017, um agente da inteligência alemã afirmou que agentes chineses haviam usado a rede social para entrar em contato com pelo menos 10 mil alvos potenciais na Alemanha. O LinkedIn não retornou o pedido de entrevista feito pela reportagem, mas já declarou em outras ocasiões tomar uma série de medidas para evitar que a plataforma seja usada por pessoas mal intencionadas. Jun Wei pagava a alguns dos seus contatos na rede para que escrevessem relatórios para sua empresa de consultoria, batizada com o mesmo nome de uma companhia renomada no mercado. Uma vez em suas mãos, as informações eram então enviadas a seus contatos chineses. Uma das pessoas que ele contatou trabalhava no programa da Força Aérea americana para construção do caça F-35 — e admitiu que vinha passando por problemas financeiros. Outra era um oficial do Exército que trabalhava no Pentágono, a quem o espião pagou pelo menos US$ 2 mil (cerca de R$ 10,5 mil) para escrever um relatório sobre como a retirada de tropas americanas do Afeganistão impactaria a China. Jun Wei acabava sendo ajudado nas buscas pelo próprio algoritmo do LinkedIn, que lhe sugeria contatos semelhantes aos perfis que ele visitava. Conforme os documentos judiciais, o espião era aconselhado a procurar por profissionais de estivessem "insatisfeitos com o trabalho" ou "em dificuldade financeira". O americano William Nguyen, que chegou a estudar na Lee Kuan Yew, foi preso durante um protesto no Vietnã em 2018 e posteriormente deportado, afirmou em um post no Facebook que Wei havia tentado entrar em contato com ele "em diversas ocasiões" desde que ele foi solto e seu caso havia gerado repercussão internacional. Em 2018, o espião postou um anúncio falso de uma vaga em sua consultoria — e diz ter recebido mais de 400 currículos, dos quais 90% vinham de funcionários do Exército ou do governo com acesso a informações restritas. Parte deles foi repassado aos agentes na China, ele disse aos investigadores. O uso do LinkedIn é uma ousadia, mas não chega a ser uma surpresa, diz Matthew Brazil, coautor de Chinese Communist Espionage: An Intelligence Primer ("Espionagem Comunista Chinesa: uma Cartilha sobre Inteligência", em tradução livre). "Acho que agentes de vários países provavelmente usam a plataforma para procurar fontes de informação", ele afirma. "Porque é de interesse de todo mundo que está no LinkedIn compartilhar dados sobre a carreira — e isso acaba sendo uma ferramenta valiosa." Ele acrescenta que encomendar relatórios e análises é um caminho que os agentes usam para "fisgar" alvos potenciais, que podem ser convencidos no futuro a fornecer informações confidenciais. "É uma versão moderna das clássicas técnicas de espionagem, na verdade." O procurador-geral assistente da Divisão de Segurança Nacional dos EUA, John Demers, afirmou que o caso é um exemplo de como a China explora "a abertura da sociedade americana" e usa "não-chineses para abordarem americanos que nunca sairão dos EUA". Cingapura mantém boas relações com os Estados Unidos, que usa inclusive bases navais e aéreas do país. Mas o arquipélago também é próximo da China — e a maioria da população é de origem chinesa. Kausikan diz não acreditar que o incidente — o primeiro caso de espionagem envolvendo um cingapuriano — estremecerá as relações com o governo americano, mas teme que cidadãos do país passem a ser vistos com desconfiança pela sociedade americana. Dickson Yeo não parece, entretanto, ter conseguido ir tão longe quanto seus recrutadores esperavam. Em novembro de 2019, ele viajou aos EUA com instruções para que convertesse um oficial do Exército em uma "fonte permanente de informação", de acordo com seu depoimento. Ele foi preso, entretanto, antes que pudesse entrar em contato com o alvo.