Capa do álbum 'O Q faço é música', de Jards Macalé Lygia Anet ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – O Q faço é música, Jards Macalé, 1998 ♪ Quando Jards Macalé soltou Besta fera em fevereiro de 2019, o artista foi ovacionado pela arquitetura ousada deste álbum apocalítico que conectou o cantor com turma de músicos e produtores paulistanos arregimentados por Romulo Fróes, Kiko Dinucci e Thomas Harres. Além das notórias qualidades do álbum, Besta fera foi recebido com entusiasmo também por ser o primeiro disco de músicas inéditas de Macalé em longos 21 anos. O álbum anterior com repertório novo, O Q faço é música, tinha sido lançado em 1998 com boa receptividade, mas sem tanta ovação, talvez por ter sido editado por gravadora, Atração Fonográfica, com marketing de alcance reduzido. Gravado sob direção musical do pianista Cristovão Bastos e do próprio Macalé, criadores dos arranjos das 16 músicas, o álbum O Q faço é música manteve o alto padrão de qualidade do cancioneiro do cantor, compositor e violonista Jards Anet da Silva – carioca nascido em 3 de março de 1943 – sem reeditar o alto teor vanguardista de álbuns como Jards Macalé (1972) e Aprender a nadar (1974). Esses dois álbuns são pedras fundamentais de discografia iniciada pelo cantor com o single quádruplo – compacto duplo, de acordo com o jargão fonográfico da época – Só morto / Burning night, editado em 1969, ano em que Macalé assombrou o público do IV Festival Internacional da Canção (FIC) com a apresentação performática de música, Gothan city (Jards Macalé e José Carlos Capinan, 1969), que aludia ao estado repressor do Brasil naquele momento tenso da história nacional. Compositor lançado em disco em 1964 por Elizeth Cardoso (1920 – 1990), cantora que apresentou Meu mundo é seu (Jards Macalé e Roberto Nascimento) no álbum A meiga Elizete nº 5, Macalé se aliou à revolução tropicalista de 1967/1968 sem perder a autonomia criativa e sem se prender ao movimento. Com liberdades estilísticas, alta dose de experimentações e ecos de bossa nova, rock e blues (sobretudo no canto por vezes ruminado), Macalé sempre transitou por ritmos cariocas como samba, samba-canção e choro, gêneros presentes no repertório de O Q faço é música, álbum cuja capa expôs Macalé bebê, no colo do pai acordeonista, em foto do acervo pessoal de Lygia Anet, mãe do artista. A gênese carioca da obra do artista saltou aos ouvidos já no trocadilho do título da primeira das 16 músicas do disco, Rei de janeiro (1998), samba composto por Macalé a partir de quatro versos do cineasta Glauber Rocha (1939 – 1981) – “Idolatrada mãe a quem recorro / Toda vez ameaçado o pranto / Paraíso São Sebastião / Rei de Janeiro” – e gravado com as vozes do conjunto As Gatas. Dentro do terreirão do samba, Macalé reconstruiu Favela (Padeirinho e Jorginho Pessanha, 1966) em cadência friccionada pela artilharia da guitarra psicodélica de Lanny Gordin e pelas vozes da Velha Guarda da Portela e da cantora Cristina Buarque. A turma portelense voltou no arremate do álbum, fechado com a batida percussiva do surdo que fez pulsar Coração do Brasil (Jards Macalé, 1998) com certa melancolia. Já Lanny Gordin reapareceu no disco com o violão de aço que emoldurou a lembrança de O mais-que-perfeito, parceria de Macalé com Vinicius de Moraes (1913 – 1980) lançada pela cantora Clara Nunes (1942 – 1983) em single de 1973, mas até então inédita na voz do próprio Macalé. Entre regravações de dois clássicos da parceria fundamental de Macalé com o poeta Waly Salomão (1943 – 2003), Vapor barato e Movimento dos barcos (em clima jazzy), ambos apresentados em 1971, o cantor mostrou músicas então inéditas em disco, caso de Destino (1998), samba-canção com sotaque de blues composto pelo artista a partir de versos do poeta tropicalista Torquato Neto (1944 – 1972). Dias antes de se suicidar, Torquato bateu na casa de Macalé e deixou dois poemas, Destino e Dente no dente (1998), ambos musicados pelo compositor e gravados no álbum O Q faço é música 26 anos após a morte do poeta. Dente no dente se revelou samba que desvendou a riqueza rítmica do violão de Macalé, único instrumento da faixa. Motor do particular universo musical de Macalé, o violão originalíssimo do músico também sobressaiu na primeira metade da gravação de Destino, posteriormente adornada com cordas. Samba da lavra mais rara de Macalé com o poeta Abel Silva, Terceira vez (1998) ganhou citação sagaz de verso de outro samba, A primeira vez (Alcebíades Barcelos, o Bide, e Armando Marçal, 1940). Nunca mais gravado desde então, Terceira vez permaneceu esquecido neste disco em que Macalé também deu voz ao samba de breque Cidade lagoa (Cícero Nunes e Sebastião Fonseca, 1959), reafirmando a conexão com o Rio de Janeiro (RJ) e a afinidade com Moreira da Silva (1902 – 2000), intérprete original da composição que versa sobre as chuvas que alagam a cidade. Tal sintonia fez com que, três anos após a edição do disco O Q faço é música, Macalé voltasse ao mercado fonográfico com tributo a este difusor do samba de breque em disco intitulado Macalé canta Moreira (2001). Fora do trilho autoral, Macalé se mostrou intérprete ousado ao trazer para a prosódia do choro um clássico do rock'n'roll, Blue sueede shoes (Carls Perkins, 1955), com aguçado senso rítmico. Dentro do universo do choro, o artista também situou o tema instrumental Mais um abraço no nosso amigo Radamés (Jards Macalé, 1998), arranjado por Cristovão Bastos em refinado clima vintage, fiel ao espírito da música do tempo do compositor, arranjador e maestro Radamés Gnattali (1906 – 1988). Na costura do disco, a faixa se alinhou com outro inédito tema instrumental da lavra de Macalé, Um abraço no Oliveira (1998), tributo a ninguém menos do que João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (1931 – 2019), papa da bossa nova, da qual Macalé também é filho, embora rebelde. Como sensível intérprete, Macalé deu voz em espanhol a Unicórnio (1982), canção mais conhecida do compositor cubano Silvio Rodríguez, em bela gravação orquestrada com cordas de molde tradicional. Parceria de Macalé com Xico Chaves, Mais uma luz iluminou flash da cidade do Rio de Janeiro (RJ) na levada de fox-blues. Já Poema da Rosa (Jards Macalé sobre versos de Bertolt Brecht em tradução de Augusto Boal, 1969), lançado na voz de Nara Leão (1942 – 1989), foi desfolhado novamente pelo cantor 21 anos depois da gravação do álbum Contrastes (1977). Condutor do leme do barco que movimenta com independência artística desde os anos 1960, Jards Macalé fez música de alta qualidade neste álbum de 1998 e também em todos os outros discos de obra coerente com a ideologia deste artista indomado.