Capa do álbum 'O samba em pessoa', de Aracy de Almeida Reprodução ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – O samba em pessoa, Aracy de Almeida, 1958 ♪ “Samba só é samba com batuque verdadeiro”, sentenciou Aracy de Almeida – com a devida autoridade conquistada por essa desbravadora cantora carioca – em verso de Batente, samba composto e lançado em 1930 pelo compositor carioca Henrique Foréis Domingues (1908 – 1980), o Almirante. Até então esquecido no baú de joias dos anos 1930, Batente reapareceu na abertura de O samba em pessoa, terceiro álbum da artista, lançado em 1958 pelo selo Polydor. Nessa época, Araci Telles de Almeida (19 de agosto de 1914 – 20 de junho de 1988) era ela própria uma joia da música brasileira dos anos 1930 que estava sendo revalorizada naquela segunda metade da década de 1950 – assim como a obra do compositor carioca Noel Rosa (1910 – 1937). Aclamada como perfeita tradutora do cancioneiro de Noel, em primazia dividida com a cantora Marília Batista (1918 – 1990), Aracy de Almeida foi a responsável pela redescoberta do compositor nos anos 1950 por conta de sete discos de 78 rotações por minuto editados pela cantora entre 1950 e 1952 pela gravadora Continental. Ao longo da carreira iniciada nos anos 1930, no disco e no rádio do tempo de Almirante, Aracy foi percebida (erroneamente) como homossexual aos olhos preconceituosos de quem nunca tolerou mulheres donas da própria vida. Feminista pioneira, Aracy viveu a boemia romantizada do Rio de Janeiro (RJ) dos anos 1930 e 1940 com liberdade rara na época. Empoderada, a artista saía para beber com os homens em bares e tabernas com independência atípica em mulheres da geração dessa cantora que estreou em disco em 1934 e que gravou regularmente até 1960. Com metade das 12 faixas lançadas paralelamente em três singles de 78 rotações por minuto, o álbum O samba em pessoa flagrou Aracy em ótima forma vocal, cantando o gênero que sempre identificou na música brasileira a intérprete também conhecida como A dama do Encantado e A dama da Central, epítetos alusivos à alma carioca dessa artista que falava gírias e palavrões com naturalidade nas conversas com os muitos amigos homens, como o pintor Di Cavalcanti (1897 – 1976). Encantado é o bairro do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro (RJ) em que Aracy foi criada e que foi citado pelo compositor Ary Barroso (1903 – 1964) em verso do samba-canção Caco velho (1934), de letra tristonha. Um dos (muitos) destaques do álbum O samba em pessoa, a gravação de Caco velho por Aracy exemplificou a habilidade da cantora de acentuar com precisão a melancolia de sambas-canção como sambas-canção como Três apitos (Noel Rosa, 1933) e Último desejo (Noel Rosa, 1937), cujo registro original da intérprete merece figurar em qualquer antologia de clássicos da música brasileira ao lado da gravação de Três apitos lançada por Aracy em 1951. Não, Aracy não regravou Três apitos e Último desejo neste álbum de 1958, mas Noel foi o compositor dominante do repertório do LP O samba em pessoa com gravações de quatro sambas menos conhecidos da lavra do autor. Até então inédito na voz de Aracy, o tristonho samba Adeus (1931) era parceria de Noel com Ismael Silva (1905 – 1978) – bamba seminal do bairro do Estácio com quem Aracy gravaria em 1966 o álbum ao vivo Samba pede passagem – e com Francisco Alves (1898 – 1952), possivelmente creditado como autor pelo fato de o cantor gravar sambas da dupla. Foi o caso de Arrependido (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves, 1931), samba também reavivado por Aracy no LP. Com Ismael, mas desta vez sem a assinatura de Francisco Alves, Noel fez Para me livrar do mal (1932), outro samba gravado pela primeira vez pela cantora nesse disco de 1958. Também inédito na voz de Aracy, Eu vou pra Vila (1930) exaltou o samba de Vila Isabel, bairro carioca onde Noel Rosa nasceu, se criou e fez história. A propósito, Turma da Vila foi o nome escolhido para o conjunto regional que acompanhou Aracy de Almeida nas 12 faixas do álbum O samba em pessoa, reverberando uma das sonoridades básicas da música brasileira da era pré-Bossa Nova. Completando o lote de sambas de Noel inéditos na voz da cantora, Vitória (1932) – parceria de Noel com Romualdo Peixoto (1901 – 1954), o pianista e compositor conhecido como Nonô – reiterou a fina sintonia entre o canto manemolente de Aracy e a verve de Noel, cuja obra popular a cantora exportou para a elitizada zona sul da cidade do Rio de Janeiro (RJ) em consagradora temporada feita de 1948 a 1952 na boate Vogue, templo de endinheirados que provavelmente nunca tivessem ouvido falar em Noel e em Vila Isabel. De todo, o álbum O samba em pessoa mostrou que Aracy de Almeida também foi mais do que a grande intérprete de Noel Rosa – imagem verdadeira e louvável, mas, a rigor, quase tão reducionista quanto a estampa nada fina da jurada rabugenta e desbocada do programa de calouros do apresentador de TV Silvio Santos. Foi com essa cristalizada imagem que Aracy passou a ser identificada pelo público a partir dos anos 1970. Contudo, basta ouvir o álbum O samba em pessoa – infelizmente nunca editado em CD e ausente das plataformas de áudio, estando disponível somente no YouTube – para perceber o quão grande cantora foi Araca, apelido da artista no meio musical. Precisa na cadência de Minha cabrocha (Lamartine Babo, 1930) e no balanço de Teleco-teco (Murilo Caldas e Marino Pinto, 1942), sucesso da contemporânea Isaura Garcia (1923 – 1993) que radiografou o machismo imperante no casamento, Aracy de Almeida acertou todos os tons do repertório desse disco primoroso, reforçando também o talento de pescadora de pérolas raras dos anos 1930 e 1940. Lançado em disco há então 26 anos na voz do cantor Castro Barbosa (1909 – 1975), o samba Passarinho passarinho (Lamartine Babo, 1932), por exemplo, estava esquecido até alçar novo voo com a cantora. Creditado a Manoel Silva, pseudônimo de Ismael Silva, o mediano samba Tristezas não pagam dívidas (1932) teve a letra imperdoavelmente machista apresentada em dueto de Aracy com o então emergente cantor Carlos José (1934 – 2020). No arremate do disco, Aracy de Almeida diferenciou o samba do morro ao cantar É batucada (José Luís de Moraes – o Caninha – e Visconde Bicohyba, 1933), composição apresentada há então 25 anos em disco de Moreira da Silva (1902 – 2000). Após o LP O samba em pessoa, Aracy de Almeida gravou quatro álbuns entre 1960 e 1966 e, após sair paulatinamente de cena como cantora para dar vez e voz à jurada implacável dos programas de calouros, a artista morreu sem o devido reconhecimento musical em 1988, ano em que foi editado Ao vivo e à vontade, o crepuscular derradeiro álbum dessa autêntica dama do Encantado, do samba e do samba-canção.