Capa do álbum 'Nelson Cavaquinho', de Nelson Cavaquinho Reprodução ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Nelson Cavaquinho, Nelson Cavaquinho, 1972 ♪ Boêmio bamba de Mangueira, agremiação fincada nas raízes do Carnaval da cidade do Rio de Janeiro (RJ), Nelson Antonio da Silva (29 de outubro de 1911 – 18 de fevereiro de 1986) viveu espreitado pela sombra da morte. A morte foi presença viva em obra autoral marcada por amarguras e dores expiadas em cancioneiro singular, urdido pelo compositor e violonista carioca com melodias inspiradas, preenchidas com versos de letristas donos de alta patente poética, caso sobretudo do parceiro Guilherme de Brito (1922 – 2006). Em 1972, a morbidez da obra de Nelson Cavaquinho – nome artístico desse músico hábil no toque do cavaquinho e do violão – foi registrada pela voz fanhosa do autor em álbum solo editado pela gravadora RCA naquele mesmo ano, dentro da Série Documento. Louvado pelo jornalista e produtor musical Sérgio Cabral em texto escrito para a contracapa do LP original de 1972, o disco intitulado Nelson Cavaquinho – e não Série Documento, como volta e meia é apresentado erroneamente na mídia impressa e eletrônica – foi o segundo álbum solo de Nelson, artista que lançara dois anos antes o disco documental Depoimento do poeta (1970). Assim como Cartola (1908 – 1980), bamba contemporâneo que o sambista conhecera nos 1930 quando vigiava o morro de Mangueira na função de policial militar, Nelson Cavaquinho precisou esperar décadas para gravar o primeiro disco, tendo debutado no mercado fonográfico quatro anos antes do LP de 1972, figurando ao lado de Cartola e Carlos Cachaça (1902 – 1999) no álbum coletivo intitulado Fala Mangueira! (1968). Mas valeu a pena esperar até os anos 1970 para ouvir três sequenciais álbuns individuais do artista, editados em 1970, 1972 e 1973. Ao longo dos 33 sublimes minutos do álbum Nelson Cavaquinho de 1972, o bamba deu a voz rouca a 12 sambas de lavra própria em repertório que fez o LP soar como perfeito best of desse compositor de sambas e sambas-canção. Muitas composições eram antigas, pois a produção autoral de Nelson Cavaquinho vinha sendo escoada desde 1939 nas vozes de grandes intérpretes da música brasileira. Outros eram inéditos, caso de Quando eu me chamar saudade, samba não por acaso alocado na abertura do disco. Neste samba, o nobre rei vadio – àquela altura já entronizado como um dos grandes bambas do samba do Brasil – pediu as flores em vida através de verso do parceiro Guilherme de Brito, também letrista de outro samba então inédito, Tatuagem, apresentado neste disco gravado com coro de vozes femininas de nomes omitidos na rala (a rigor, inexistente…) ficha técnica do LP original, gravado sob “coordenação artística” de Waldyr Santos. Com a sabedoria dos intérpretes conhecedores das dores da alma e da própria obra, Nelson Cavaquinho acentuou com precisão a melancolia resignada de Eu e as flores (Nelson Cavaquinho e Jair Costa, 1968), outro exemplo do caráter mórbido do cancioneiro do compositor. Nesse cancioneiro calejado por abandonos e humilhações, a tristeza foi senhora em sambas como Palhaço (Nelson Cavaquinho, Oswaldo Martins e Washington Fernandes, 1951). Mesmo quando o rei verde-e-rosa louvou a escola do coração em Sempre Mangueira (Nelson Cavaquinho e Geraldo Queiroz, 1972), grande samba apresentado no álbum com arranjo evocativo de batucada carnavalesca, a dor e a morte sempre pareceram à espreita para acabar com a alegria. Na visão doída da obra de Nelson Cavaquinho, a vida era sofrimento carregado como cruz, como sublinhou o cantor-autor na poética de Deus não me esqueceu (Nelson Cavaquinho, Sidney Silva e Armando Bispo, 1970), samba cheio de culpa católica, lançado há então dois anos pelo cantor Germano Batista (1937 – 2018). Remoída em Degraus da vida (Nelson Cavaquinho, César Brasil e Antônio Braga, 1950), samba até nunca registrado em disco com a rouquidão vocal do autor, a ideia da finitude – a da vida ou mesmo a de um amor – sempre esteve entranhada na obra de Cavaquinho, o que justificou os versos lapidares “Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com minha dor” escritos por Guilherme de Brito e cantados por Nelson em A flor e o espinho (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha, 1957), samba antológico alocado na abertura do lado B do LP. Como exemplificaram gravações de sambas como Notícia (Nelson Cavaquinho, Alcides Caminha e Nourival Bahia, 1955) e Lágrimas sem júri (Nelson Cavaquinho e Fernando Mauro, 1972), composição então inédita que somente mereceu uma regravação (do cantor Celso Rodrigo, em 1978) desde o registro original do autor, o álbum Nelson Cavaquinho embalou a obra do compositor com tradicional acompanhamento instrumental de samba, sem dar o protagonismo ao violão do artista. No arremate do disco, Luto (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Sebastião Nunes, 1960) e Luz negra (Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso, 1961) sublinharam a amargura que alimentou a vida e o samba existencialista de Nelson Cavaquinho.