Capa do álbum 'Canções d'além-mar', de Zeca Baleiro Arte de Elifas Andreato Resenha de álbum Título: Canções d'além-mar Artista: Zeca Baleiro Gravadora: Saravá Discos / ONErpm (distribuição da edição digital) Cotação: * * * * ♪ Como a bossa carioca, a música portuguesa é um estado de espírito que, no caso, extrapola a melancolia do fado, ritmo que ainda identifica o cancioneiro lusitano no mapa-múndi sonoro. Zeca Baleiro foi em busca desse estado de espírito no tom pop contemporâneo do álbum Canções d'além-mar, lançado pelo cantor maranhense na sexta-feira, 10 de julho, com capa assinada pelo artista visual Elifas Andreato. Caracterizado por Baleiro como antologia pessoal, cujo recorte afetivo o libera de ser coletânea oficial com “o melhor” do cancioneiro português, o disco revolve a memória do artista que, na juventude, nos anos 1980, foi presenteado pela amiga Laurinda com fita cassete com gravações de músicas de compositores portugueses como Fausto, José Afonso (1929 – 1987), Sergio Godinho e Vitorino. Sintomaticamente, todos estes autores tiveram músicas escolhidas por Baleiro para figurar entre as onze canções d'além-mar que compõem o repertório do álbum produzido pelo próprio Zeca Baleiro no Brasil, mas com conexões com a Terrinha. O resultado é disco que reverencia a música e os compositores de Portugal com respeito, mas sem fé cega. Sem resistir à tentação de perseguir a perfeição pop radiofônica ao regravar Às vezes o amor (Sergio Godinho, 2006), faixa com a qual Baleiro anunciou o tributo ao lançá-la como single em janeiro, o cantor adensa o clima ao dar voz à balada Tu não sabes (Pedro Abrunhosa, 2002), um dos destaques do repertório. Baleiro conheceu a obra do cantor e compositor Pedro Abrunhosa com o grupo Bandemónio quando ganhou o álbum Viagens (1994) do amigo Hiro, designer gráfico da capa do primeiro álbum do cantor brasileiro, Por onde andará Stephen Fry? (1997). A propósito, foi no embalo da repercussão desse disco de estreia que Baleiro foi convidado, em 1998, a interagir com Abrunhosa em show apresentado dentro do projeto Navegar é preciso, criado em São Paulo (SP) para promover encontros entre artistas do Brasil e de Portugal. A partir de 1999, ano em que lançou o segundo álbum, Vô imbolá, Baleiro passou a se apresentar regularmente em Portugal e a fazer conexões com artistas da Terrinha em discos e shows – o que lhe dá legitimidade para selecionar e encarar essas canções d'além-mar. Somente a escolha de Ali está a cidade (1987) – beleza poética do cancioneiro de Fausto, plenamente evidenciada em gravação pontuada pela intervenção do trompete de Sidmar Vieira – já justificaria o disco em que Baleiro também revive, em ritmo de ska e com toque de trilha sonora de filme de ficção científica, Capitão romance (Nuno Prata, Elísio Donas, Manuel Cruz, Miguel Vicente ardoso e Peixe, 1999), música lançada pela banda Ornatos Violeta no álbum O monstro precisa de amigos (1999). Em estação mais lírica e melancólica, Balada de outono (1960) – a música mais antiga do repertório, lançada há 60 anos pelo cantor e compositor José Afonso (1929 – 1987) – tem a delicadeza acentuada pelas notas salpicadas pelo piano do músico português Manuel Paulo. Zeca Baleiro dá o devido tom a músicas dos compositores portugueses Fausto e Vitorino no álbum 'Canções d'além-mar' Silvia Zamboni / Divulgação Do cantor e compositor português António Variações (1944 – 1984), ícone gay do universo pop lusitano, Baleiro registra Canção de engate (1984), música que já abordava em shows, e embarca na “aventura dos sentidos”, mote da letra libertária em que Variações fez ode à fugacidade prazerosa do amor carnal. Música da banda Ala dos Namorados, Razão de ser (E valer a pena) (João Gil e João Monge, 2000) é valorizada no disco pelo imponente toque flamenco do violão de Pedro Jóia em gravação que peca pelos vocais excessivos do coro. Já Todo o tempo do mundo (Rui Veloso e Carlos Tê, 1998) é balada que evidencia o azeitamento da banda-base do disco, formada por Adriano Magoo (piano, teclados e acordeom), Fernando Nunes (baixo), Kuki Stolarski (bateria e percussão), Pedro Cunha (synths e samplers) e Tuco Marcondes (guitarra, violão e gaita), além do próprio Zeca Baleiro na voz, no violão e na guitarra. Fora do arco pop em que gravita o álbum, a bela composição Menina, estás à janela (Vitorino, 1975) sobressai entre as 11 canções d'álém-mar ao abrir frestas para lirismo de acento rural realçado pelo acordeom tocado por Nathanael Sousa, músico português radicado no Brasil. Já Bairro do amor (Jorge Palma, 1977) se situa em ambiente mais tristonho e solitário, em endereço já conhecido por Baleiro, que, em 2006, gravou outra canção do compositor Jorge Palma, Frágil (1989), para faixa-bônus da edição portuguesa do álbum Baladas do asfalto & outros blues (2005). Ambientada nesse mesmo terreno de solidão e emoldurada pelas cordas da Orquestra St. Petersburgo, a canção noturna É no silêncio das coisas (José Cid, 2009) reitera a beleza que há no pop português contemporâneo e que Zeca Baleiro ajuda a descortinar para ouvidos brasileiros – com o devido estado de espírito e com a já notória habilidade de intérprete – neste coeso álbum Canções d'além-mar.