Com arranjos orquestrais de Dori Caymmi, o disco da cantora carioca tem o mesmo caráter atemporal do songbook em que Ella Fitzgerald deu voz à obra de Cole Porter. Capa do álbum 'Nana Tom Vinicius' Divulgação / Selo Sesc Resenha de álbum Título: Nana Tom Vinicius Artista: Nana Caymmi Gravadora: Selo Sesc Cotação: * * * * * ♪ Para fazer justiça ao álbum em que Nana Caymmi interpreta 10 canções da parceria essencial de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) com Vinicius de Moraes (1913 – 1980), é preciso compreender a dimensão atemporal desse disco orquestral gravado sob direção musical de Dori Caymmi, com repertório que abrange duas composições em que Vinicius assinou sozinho música e letra, Valsa de Eurídice (1956) e Serenata do adeus (1958). Disponível com exclusividade na plataforma Sesc Digital a partir desta sexta-feira, 10 de julho, o álbum Nana Tom Vinicius tem o mesmo caráter acrônico do songbook em que a cantora norte-americana Ella Fitzgerald (1917 – 1996) deu voz à obra do compositor Cole Porter (1891 – 1964) em disco também gravado com orquestra e editado em 1956, ano da abertura da parceria de Tom com Vinicius. Em bom português, trata-se de discos imunes aos efeitos do tempo pela solidez inoxidável da voz, do cancioneiro abordado por essa voz e dos arranjos (de Dori Caymmi, no caso do songbook de Nana). A rigor, o álbum Nana Tom Vinicius poderia ter sido lançado em 1960, pois todas as 12 músicas do repertório foram apresentadas entre 1956 e 1959. Mas está saindo em 2020, 60 anos depois. Se por um lado o disco pode soar antigo ou mesmo previsível, por outro soa absolutamente sublime porque tudo em Nana Tom Vinicius é de qualidade excepcional que se conservará eternamente brilhante, acima dos padrões musicais de todas as épocas. Cantora de alma antiga, tradicionalmente avessa às contemporaneidades da música brasileira, a carioca Nana Caymmi se afina com o tempo eterno dessas 12 canções do amor demais. Tempo geralmente triste, como sublinha verso de Sem você (1959), já que, até mesmo numa canção de aparente paz como Luciana (1958), o poeta adverte que “o amor é embriagador, mas também traz muita dor”. Nana Caymmi e Dori Caymmi no estúdio em que o disco foi gravado em abril de 2019 Divulgação / Selo Sesc Como o single Eu sei que vou te amar (1959) mostrou em junho, Nana estava em plena forma vocal quando gravou o disco em estúdio da cidade do Rio de Janeiro (RJ), em abril de 2019, mês em que completou 78 anos de vida. Sem perda da intensidade emocional, a cantora experimenta tons mais suaves na interpretação de canções como As praias desertas (1958) e Janelas abertas (1958) – duas composições apresentadas na voz da cantora Elizeth Cardoso (1920 – 1990) no primeiro songbook deste dedicado ao cancioneiro de Tom e Vinicius (descontada a edição em 1956 do LP com a trilha sonora da peça Orfeu da Conceição, marco inaugural da parceria). Deste disco de 1958, intitulado Canção do amor demais (1958) e celebrado equivocadamente como o marco zero da bossa nova por ter tido o violão de João Gilberto (1931 – 2019) em duas faixas, Nana rebobina seis das 13 músicas, à vontade na cama orquestral armada por Dori Caymmi. A excelência dos arranjos reafirma a maestria de Dori no ofício. O uso da orquestra foi feito com doses precisas. As cordas estão em todo o disco, mas sem ofuscar a delicadeza do toque do piano de Itamar Assiere, por exemplo, ou do sopro das flautas de Daniel Allain e Teco Cardoso – e cabe ressaltar que as flautas são marcas registradas nos arranjos criados e regidos por Dori. Afinada com esse tradicionalista universo musical, Nana jamais sai do tom. Nana é a cantora que chora com a voz dentro do coração em Modinha (1958), que interioriza o desespero de Canção do amor demais (1958) e que, com a devida solenidade, faz o juramento de amor eterno que pauta Por toda minha vida (1959). Sim, faz-se o drama ao longo do álbum Nana Tom Vinicius – como a intérprete explicita no canto triste do Soneto da separação (1959) – só que nada passa do tom no disco. Ao cantar Tom e Vinicius, Nana Caymmi soa intensa – por vezes até dramática ou mesmo ocasionalmente suave como no canto de Se todos fossem iguais a você (1956) – sem pisar no pantanoso terreno do sentimentalismo kitsch. É por isso que, no tempo eterno das canções do amor demais de Tom e Vinicius, Nana Caymmi se confirma cantora inoxidável como os compositores que louva neste irretocável songbook.