Capa do álbum 'Dolores Duran canta para você dançar…', de Dolores Duran Reprodução ♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Dolores Duran canta para você dançar…, Dolores Duran, 1957 ♪ Celebrada postumamente pelo inspirado cancioneiro autoral que abriu alas nos anos 1950 para impor a expressão artística da mulher na arte da composição, ofício então de dominante produção masculina, Dolores Duran foi também cantora. Foi como crooner de boates que a carioca Adiléia Silva da Rocha (7 de junho de 1930 – 24 de outubro de 1959) despontou primeiramente na música e na efervescente noite da cidade natal do Rio de Janeiro (RJ) dos anos 1950. Mesmo sem ter sido cantora de multidões como Angela Maria (1929 – 2018) e Dalva de Oliveira (1917 – 1972), estrelas contemporâneas da era do rádio, Dolores obteve o respeito dos colegas como crooner poliglota de voz atraente e, por ter vivido somente 29 anos, saiu precocemente de cena, no auge, sem ter recebido em vida as flores pelo cancioneiro delicado, sensível, por vezes dolente, sempre refinado. Segundo dos quatro álbuns lançados pela artista entre 1955 e 1959, Dolores Duran canta para você dançar… reiterou o talento da crooner ao ser posto no mercado em 1957 com o selo da Copacabana, gravadora na qual a cantora registrou toda a obra, composta por 75 fonogramas produzidos entre 1951 e 1959. Gravado com arranjos de Severino Filho (1928 – 2016), integrante do conjunto vocal Os Cariocas, Dolores Duran canta para você dançar…. foi disco de intérprete em que a cantora deu voz afinada e macia a uma espécie de playlist com sucessos cantados nas boates, clubes, festas e programas de rádio da época – como foi enfatizado pelo autor anônimo do texto escrito para a contracapa do álbum. Esse texto trazia a informação de que se tratava do terceiro LP da cantora porque, no ano anterior, a gravadora Copacabana lançara nesse novo formato uma compilação, Dolores Duran (1956), com gravações feitas pela artista para singles de 78 rotações por minuto. A rigor, o disco Dolores Duran canta para você dançar… foi o segundo LP com gravações inéditas da cantora, já que a artista lançara até então somente um álbum com fonogramas inéditos, Dolores viaja, editado em 1955, ano em que os LPs de dez polegadas começaram a se popularizar no mercado fonográfico brasileiro. Foi nesse segundo álbum que a autora da sublime canção A noite do meu bem (1959), derradeiro sucesso da compositora, gravou pela primeira vez uma música de lavra própria. E que música! Segunda das 14 músicas na disposição das faixas no LP, o samba-canção Por causa de você (1957) tinha a letra feita por Dolores em criação que se tornaria cercada de lendas, como a de que Dolores teria escrito a letra a batom, em alguns poucos minutos, assim que ouviu a música do parceiro Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994). E que teria implorado a Vinicius de Moraes (1913 – 1980), letrista preferencial de Tom desde 1956, a oportunidade de ser a coautora de Por causa de você, cuja melodia seria destinada aos versos do poeta. Embora sedutora, a história é inverossímil. Até porque, em 1955, Dolores já se iniciara na arte da composição tendo como parceiro o mesmo Jobim na criação da música Se é por falta de adeus. Lenda à parte, o que ninguém conseguiu jamais contestar foi a fina sintonia entre a música e a letra de Por causa de você, faixa que, no repertório poliglota deste álbum de 1957, se alinhou com o tom lacrimoso de outra música, Quem foi (Nestor de Holanda e Jorge Tavares, 1947), gravada em andamento de samba-canção, gênero então dominante nas boates, em supremacia ameaçada pelo reinado dos boleros no Brasil dos anos dourados. Nesse gênero, o samba-canção, Dolores rebobinou grande sucesso recente – Conceição (Dunga e Jair Amorim, 1956), blockbuster lançado no ano anterior na voz de Cauby Peixoto (1931 – 2016) – sem carregar no melodrama típico do ritmo. No reino do bolero, Dolores viajou na moldura mexicana do arranjo do bolero Que murmuren (Rafael Cárdenas e Rubén Fuentes), devidamente cantado em espanhol, idioma de outro bolero do disco, Mi último fracasso (Alfredo Gil). Aberto com a pitoresca gravação em ritmo de baião do sucesso italiano Scapricciatiello (Ferdinando Albano e Pacífico Vento), cantado pela crooner no idioma napolitano, o álbum Dolores Duran canta para você dançar… deu quase uma volta ao mundo nos 36 minutos em que a artista interpretou 14 músicas. Intérprete poliglota, a cantora mostrou fluência tanto no canto em italiano da música Oho aha (Heinz Gietz e Kurt Feltz) quanto no inglês romântico de Only you (Ande Rand e Buck Ram, 1955), sucesso do grupo norte-americano de doo-wop The Platters que Dolores gravou com toda a ternura da balada. Em bom português, a cantora também caiu com fluência e espirituosidade na cadência dos sambas Coisas de mulher (Francisco Nepomuceno de Oliveira, o Chico, e Baiano, 1956) – lançado no ano anterior pelo conjunto Titulares do Ritmo – e Feiura não é nada (1957). Feiura não é nada era um dos três temas então inéditos de Billy Blanco (1924 – 2011), compositor recorrente na discografia de Dolores. De Blanco, a cantora também gravou mais três sambas-crônicas – Camelô (1957), Estatuto de boite (1956) e Se papai fosse eleito (1957) – neste álbum de 1957. Camelô vendeu ideologia social em meio a um repertório predominantemente dançante. Já Estatuto de boite fechou o disco em grande estilo, com gravação exemplar que evidenciou a leveza e o senso rítmico do canto de Dolores Duran. Por mais que a rota da viagem musical da cantora poliglota tenha incluído algumas escalas exóticas, como a gravação em ritmo de rumba da canção francesa Viéns (Charles Aznavour e Gilbert Bécaud, 1953), o álbum Dolores Duran canta para você dançar… se configurou como retrato fiel ao espírito musical da época em que a crooner brilhou na noite carioca dos anos dourados. Se não tivesse partido tão cedo, vítima de anomalia congênita no coração, Dolores Duran certamente teria sido aclamada em vida como a compositora relevante que foi, em pioneirismo dividido com a contemporânea Maysa (1936 – 1977), e teria gravado álbuns mais autorais, condizentes com a sofisticação e a ternura de cancioneiro que sobreviveu ileso aos efeitos do tempo.