Cineastas e roteiristas ouvidos pelo G1 imaginam quais serão os reflexos da época do novo coronavírus nas histórias contadas nos filmes e na TV. A pandemia do novo coronavírus adiou ou interrompeu gravações de filmes em todo o mundo. Com as pessoas em casa e aglomerações evitadas a todo o custo, a crise teve um profundo efeito sobre o calendário de estreias e das principais premiações do cinema e da TV. Mas, depois de meses de isolamento social e de quarentena, enquanto algumas produções começam a voltar aos trabalhos, não é difícil imaginar que sua influência deve ir além, com reflexos nas próprias histórias que serão contadas pelos próximos anos. "É claro que uma situação como essa vai influenciar a cabeça de quem cria histórias. Saindo de um período como esse temos duas questões principais. A primeira é o que o público vai querer ver depois de ficar trancafiado em casa por meses?", diz o diretor e roteirista André Ristum ("A voz do silêncio"). "Outra reflexão, que pode ser um olhar mais simplista, é que ninguém vai querer nada mais denso, sobre a pandemia. Fazendo um paralelo sobre a Segunda Guerra Mundial, quanto tempo demorou para aparecer o primeiro filme sobre a guerra?" O questionamento tem como base todas as vezes em que o cinema foi influenciado por momentos de grandes tensões ou conflitos ao longo da história. A indústria ainda era jovem quando teve de sobreviver à última pandemia, da gripe espanhola, em 1918. Reflexos de tensões Assim como com a Covid-19, a doença primeiro foi subestimada por Hollywood, que com o tempo teve cinemas fechados e produções encerradas. O astro de filmes mudos Harold Lockwood foi uma das vítimas do vírus. Depois de se recuperar, a indústria americana, que se tornava a principal do mundo, enfrentou outros períodos de instabilidade. Com a Segunda Guerra, passou a apostar em filmes mais introspectivos, reflexo de veteranos voltando ao país e da adaptação à vida após o conflito. Na Europa aconteceu movimento semelhante. "Se pensarmos no caso do Neorrealismo, um movimento do cinema italiano pós-Segunda Guerra, vamos identificar que ali os filmes passaram a fazer um retrato da nova realidade social e econômica de uma Europa de terra arrasada, com uma estética que aproximou os filmes de ficção dos documentários", afirma o roteirista George Moura. O escritor de filmes como "Linha de Passe" (2008) e "O grande circo místico" (2018) desenvolve a série "Onde está meu coração", para o Globoplay, com o também roteirista Sérgio Goldenberg. "Em primeiro lugar, teremos a difícil missão de manter o cinema de pé, da produção à exibição. Foi uma das áreas mais afetadas. Temos que fazer de tudo para evitar naufrágios que começam a acontecer, de empresas e também de profissionais, que atingiram um alto padrão de qualidade e foram obrigados a parar", diz Goldenberg, que tem no currículo séries como "Onde nascem os fortes" e "O rebu". O antagonismo que atrai Para o psiquiatra Adriano Segal, a ficção deve retratar as possibilidades que não tiverem se realizado durante a pandemia. "O que as artes vão explorar vai ser o que é antagônico ao que aconteceu de verdade. Se voltarmos ao status anterior, no qual o egoísmo era o dono do convívio, por exemplo, vai ser explorado um aspecto mais bonito", afirma Segal. Já se a população passar a tomar mais cuidado com os demais, como ao usar máscaras para diminuir o risco de contaminação dos outros quando estiver doente, ele acredita que histórias distópicas devem dominar. "A busca que a gente tem quando vê coisas de ficção é o complemento da realidade. Então, uma coisa muito realista tem muito menos impacto nas grandes massas do que algo fantasioso. Vai ter uma busca pelo 'twist', pela quebra de enredo, senão fica muito pasteurizado." Veja abaixo as principais possibilidades que as histórias do cinema e da TV podem seguir após a pandemia, de acordo com cineastas e roteiristas ouvidos pelo G1: Escapismo primeiro Histórias leves, que transportem o espectador para outra realidade podem virar comuns depois da pandemia Wagner Magalhães/G1 Sérgio Goldenberg, roteirista de "Onde nascem os fortes" "Passados os efeitos da pandemia, acho que o público vai precisar respirar um pouco. Ver histórias que nada têm a ver com o que estamos vivendo, como já acontece no streaming. O meu último filme, 'Um Casal Inseparável', em fase de edição (terminamos de filmar na semana do Carnaval), se encaixa nesse perfil. Mas, depois, ainda veremos muitos filmes sobre esse período da história, por vários anos. Momentos como esse criam novas tensões, antes impensáveis, em casa, na rua, na internet. Do casal que compartilha a guarda dos filhos à ambulante que tem que trabalhar exposta ao vírus porque precisa botar dinheiro em casa, tudo é novo, urgente e dramático. É o que alimenta a ficção e as narrativas que ainda vãos ser criadas, de um jeito ou de outro. E, por mais absurda e inesperada que seja a realidade, a ficção – e o cinema, em específico – tem uma capacidade única de reinventar a vida e nos mostrar novos ângulos, que nos aproximam do outro e de nós mesmos. A esse pesadelo global, cheio de histórias dramáticas, que nos fazem chorar e, quem sabe, um dia, nos levarão a rever algumas de nossas escolhas, soma-se o nosso, verde e amarelo, talvez ainda pior, fruto de um populismo retrógrado, que quer destruir a arte e a ciência. Mas não vai conseguir. É um pesadelo que também vai passar e somos nós quem contaremos essa história, ajudando os espectadores a entender o que aconteceu e jamais permitir a volta desse mal maior." Mais empatia Histórias focadas na empatia, que reflitam a maior preocupação do público com os demais, são outra opção no cinema e na TV pós-isolamento Wagner Magalhães/G1 André Ristum, diretor e roteirista de 'A voz do silêncio' "Indo um pouco além do raciocínio mais óbvio e simplista, fico tentando avaliar de uma maneira positiva para a humanidade como esse momento despertou um senso cívico maior, uma humanidade maior. Um olhar para o outro maior. Porque essa questão da máscara é um símbolo da relação entre humanos. O uso dela não significa só não querer se contaminar, mas querer proteger o outro. Esse período nos proporcionou de maneira geral, não todo mundo, mas tem uma boa parte das pessoas que pode entrar em uma fase mais reflexiva, mais observadora. Talvez isso seja uma oportunidade para fazer surgir um cinema mais complexo, um cinema que traga uma maior reflexão. Esse tipo perdeu espaço nas últimas décadas, chegou a ter uma glória comercial nos anos 1950 e 1960, foi perdendo espaço, e na última década foi parar nos guetos do cinema muito rebuscado. Mas fico na esperança se talvez esse momento de maior aprofundamento nas questões, esse olhar para o outro não vão despertar nessa nova geração um interesse maior por produtos que entreguem mais do que um puro momento de relaxamento e diversão. Não que isso seja ruim, eu adoro, mas acho que não precisa ser só isso. Talvez, com um pouco de esperança, a gente consiga encontrar um espaço para um audiovisual, não só no cinema, mas também séries, que tragam um olhar mais interessado no humano. A gente tem ondas muito fortes que vêm depois de períodos difíceis. Quem sabe isso não pode se repetir?" Nada vai mudar Obras que reflitam a realidade devem continuar existindo após a pandemia, de acordo com roteiristas Wagner Magalhães/G1 Paulo Morelli, diretor e roteirista de 'Malasartes e o Duelo com a Morte' "Não sei se vai mudar. O que estou escrevendo agora não vai mudar. O que pode mudar é, nos projetos futuros, uma cena que reflita o que estamos vivendo. Mas eu não pretendo fazer um filme de final feliz só porque as pessoas estão precisando. Não acho que se as pessoas passaram por um período difícil, então precisamos fazer histórias mais solares. Se eu apostasse fichas em uma mudança não estaria fazendo nada mais que uma aposta, e até um pouco leviana. Talvez o comportamento das pessoas mude, mas não sei se as obras de arte vão mudar. Talvez as pessoas olhem mais pros outros, isso pode mudar. Talvez a empatia esteja aumentando. Mas é difícil dizer o quanto isso vai se reverter nas obras de arte, elas são mais complexas. Não acho que isso vai ser tão direto. Os autores querem contar algo. E às vezes pode acontecer por lados opostos. Você pode falar sobre solidariedade mostrando finais sobre ela, mas também pode passar a mesma emoção mostrando o oposto, a não-solidariedade. A diversidade é muito importante e vai continuar predominando. O que vai predominar, e sempre predominou, são boas histórias." George Moura, roteirista de 'O Grande Circo Místico' "Estamos tão imersos na crise do coronavírus e do próprio país, com um governo de ações erráticas, que é difícil arriscar uma previsão. Se o futuro já era difícil de prever, com a pandemia, ele parecer ser um eterno futuro do pretérito. É como se não existisse amanhã. Mas, em nome da sanidade mental, temos que acreditar que vai passar. Acredito que a maior mudança do cinema pós-pandemia não estará nos filmes, mas estará em nós, que mudamos, de alguma maneira, ao viver este momento agudo. Não acredito que vamos fazer filmes numa única direção, sejam comédias escapistas ou distopias que ecoem a crise da Covid-19. Cada filme, seja o roteiro e a direção, vai reagir de uma maneira singular a esse trauma mundial. Para mim a grande questão é: que histórias ainda têm sentido de serem contados depois de uma vivência tão radical? Não tenho a resposta e acho difícil que ela exista agora. Mas vislumbro que as novas histórias vão precisar passar ainda mais pelo humano e pelo afeto."